O Monstro da Chácara


Na infância, os quatro amigos passavam as tardes na chácara do pai do Olavo no Sobral aprontando traquinagens, engordando e ouvindo histórias. O pai do Olavo contava um cem número de lorotas para assustar os garotos e quase sempre arrancava mais risos do que sustos. O avô sempre estava presente, mas raramente participava das sessões de histórias de terror. Mas bastou um único conto para deixar os meninos instigados.

Ele dizia que quando estava virando homenzinho, seu pai havia enriquecido de repente. Havia mudado de hábitos abruptamente e passava mais tempo dormindo que acordado. Dedicava parte do tempo em ficar rabiscando símbolos estranhos que ele julgava ser a origem obscura da fortuna. Pouco antes de morrer, teria evocado sem querer a própria mula-sem-cabeça, que permaneceria perdida vagando por aquelas terras porque seu pai seria incapaz de mandá-la de volta de onde veio.

Daquele momento em diante, não haveria verão na chácara sem que os quatro não ficassem debruçados sobre a velha sacada da casa tentando descobrir onde a mula-sem-cabeça apareceria. Não falavam em outra coisa e não pensavam em outra coisa. Qualquer rugido, qualquer luz ou luar diferente tinha a ver com a mula vagando,  tentando voltar para casa.

A Maldição do Sorriso


Verdade ou não, a história que vou lhes contar serve, no mínimo, para refletir a respeito dos efeitos nocivos da introspecção em excesso. Certas pessoas se prendem em verdadeiros “casulos da alma“ e vivem distraídas, alheias a tudo. Com pouco interesse em tudo o que é real e social, terminando muitas vezes a se desfazer do próprio corpo.

Mas a história que você vai ler não chama a atenção por esse grau de desleixo com o “palpável“, mas por uma característica que as pessoas muito introspectivas têm em comum: o excesso de detalhismo e obceção.

Odair esteve em um velório. Foi obrigado porque o defunto trabalhara com ele e foi convencido de que enforcar em casa tal data solene, em vez de dar o último adeus ao cadáver bem vestido, seria leviano demais e deixaria as pessoas com raiva.

Uma pessoa que Odair não sabia direito quem era pediu, a esmo, que fizesse uma oração em voz alta para que todos acompanhassem. Todos do escritório estavam rodeados e de cabeça baixa e Odair se lembrou que não sabia rezar... Na verdade, nem sentir-se triste Odair sabia fazer...

A pior coisa do mundo (parte 2 de 2)


Conheci Joaquim e Osvaldo há poucos meses em um grupo de apoio para pessoas com minha mesma doença terminal. Embora nós três pareçamos bem, temos poucos meses de vida.

Mesmo assim, parece que os conheço há décadas.

Joaquim esteve sumido. Quando reapareceu, veio contando sobre um culto que passou a fazer parte. Dizia muitas coisas que, na época, não faziam sentido. Nos contou conhecimentos secretos sobre uma espécie de realidade paralela que era feita por remendos de pesadelos chamada de “éter”. Agora sei que não existe forma adequada sobre como chamar esse lugar. Nos contou também um cem número de coisas que dois exploradores fizeram na tentativa de estudar esse lugar e também o mundo dos sonhos. Esses dois eram chamados só pelas iniciais “S.” e “V.”. Osvaldo ficou tão impressionado com essas histórias que decorou parágrafos daqueles delírios todos (que agora sei que são reais).

Me chamo Inácio e, para resumir, sou um sujeito prático e direto ao ponto. Infelizmente, nem toda a praticidade e bom senso do mundo me preparou para a aventura que estou relatando. Se você perguntar ao Osvaldo o que aconteceu do ponto de vista dele, tenho certeza de que este relato teria algumas páginas a mais. Mesmo assim, ele não seria digno da experiência por que passamos.

A pior coisa do mundo (parte 1 de 2)


Joaquim, Inácio e eu nos encontramos certa vez em um bar, a pedido do primeiro, para tratar de um assunto que poderia trazer alívio para todos os nossos corações. Nós três fomos diagnosticados com um terrível tipo de doença que nos reserva poucos meses de vida. Nosso infortúnio, igualmente nos tira o sono e o sossego de nossos familiares, uma vez que ficamos amargos e pessimistas. Nos conhecemos num grupo de apoio à vítimas do mesmo mal e nos identificamos logo de cara. Assim, dividimos nossas frustações e aprendemos a conviver com elas.

Joaquim esteve um tempo afastado. Esteve frequentando uma estranha religião que não sei bem se lhe cabe esse nome. Ele trazia novidades: dizia que tinha aprendido muitas coisas secretas e veio com uma história inacreditável e idealista. Já que íamos fatalmente morrer em poucos meses, queria que sua vida tivesse valido a pena e nos propôs o absurdo: queria destruir o que chamou de “a pior coisa do mundo“, para acabar com o sofrimento da Humanidade.

Amanda tem um segredo


Amanda tem um segredo.

Amanda tem 19 anos e a pele branquinha. Seus cabelos são castanhos, longos e sedosos. Chegam até a metade das costas. Ela gosta de enrolá-los em coque, só para deixá-los se soltar e espalhar o aroma do shampoo gostoso em câmera lenta. Tem os olhos lindos e o rosto de princesa. A voz de Amanda é capaz de acabar com uma guerra (ou de provocar outra). Suas mãos estão entre a delicadeza de uma fada e a malícia do pecado. Gosta de provocar, mas de jeito sutil. Usa, sempre que pode, bermuda jeans curta até a altura das cochas brancas. Os garotos se apaixonam por ela, os adultos a desejam, as mulheres a invejam. Mas Amanda tem um segredo - só que ainda não é hora de contar (ela pode estar ouvindo...)

Amanda gosta de colocar o pingo no “i“ como uma bolinha. Tem letra redondinha e ainda hoje tem o costume de medir o parágrafo dos manuscritos com dois dedos. Amanda é ótima em matemática, mas já mentiu só para fazer aula de reforço com certo professor. Amanda não é virgem, mas só tem certeza disso quem já beijou a sua flor... Mas Amanda tem um segredo - só que ainda é cedo para contar porque ela parece desconfiada...

Precisamos falar do eclipse


É chegada a hora de falar do eclipse. Mais uma vez, companheiros, reafirmo o que já venho escrevendo tem um tempo. Os experimentos com a nova e fascinante matemática recém-descoberta da improbabilidade precisam sessar. Pelo menos até termos dados que nos tranquilize quanto aos efeitos de seu uso.

Existem eventos que se sucederam ao eclipse que são muito mais graves e que são desconhecidos por todos. Falarei deles mais adiante. Antes, quero chamar a atenção pela forma misteriosa e aparentemente “gratuita” com que essa matemática obscura chegou até nós e convido todos a refletir sobre a real intenção por trás da ajuda.

Faço um pequeno exercício de memória com vocês ao recordar as circunstâncias da chegada das fórmulas: foi em 26 de maio do ano passado. Eu ainda trabalhava no departamento de Física Teórica da Universidade do Sobral. Na época, falava-se muito de um caso envolvendo um penetra nas aulas que teria fabricado uma bomba para confrontar um professor, vitimando duas pessoas e provocando inúmeros estragos. Entre os mais antigos, ressuscitou o boato da tal da “Equação do Zero“. Segundo eles, os impactos não podiam ter sido resultado de uma bomba caseira, mas de um artefato avançadíssimo, já que nem pólvora a bomba levava.

Algumas testemunhas chegaram a afirmar que a bomba havia sido montada na presença de todos. A maioria se recusa em dar maiores detalhes do caso por uma possível intimidação do Campus, mas é óbvio que os estragos foram além dos divulgados.

O Caminho de Casa


(Esta noite aconteceu uma coisa engraçada: me perdi nas fantasias que eu mesmo escrevo...

Era uma daquelas que se passam no mundo dos sonhos. Confusa, obliqua e que você, parte sabe que está sonhando, e parte não. Só tem certeza mesmo porque, de repente, se vê deitado na cama e percebe ter na memória acontecimentos que nunca aconteceram e que não se lembra de como começaram.

Sempre tive sonhos e pesadelos que renderiam bons Dalis (e bons Gigers). Tinha para todos os gostos e gêneros. Mas eles foram cessando, ou pelo menos parei de me lembrar deles quando acordava. Meus piores pesadelos, no entanto, pouco se parecem com os que fantasio. Acho que não têm o peso dramático para se tornarem interessantes para ser contados. Além de contar com uma narrativa que perturbaria algumas pessoas de algumas orientações religiosas.

O Segredo dos Garotos


Os meninos da rua de baixo chamaram a Tuca, o Dudú e o Jásper para mostrar uma coisa que acharam, depois da aula.

Todo mundo ficou empolgado! Mas os meninos da rua de baixo, além de reconhecidamente mais destemidos, sabiam muito bem guardar segredo. Mais do que isso: sabiam mesmo como provocar a curiosidade de todo mundo.

A notícia foi se espalhando e, até a hora do recreio, não se falava em outra coisa! Até os amaços que a atirada Denise deu no menino (bem) mais velho eram nada perto do assunto do achado dos garotos. Tanto que ela sentiu um tremendo ciúmes de não estar mais no vórtice das fofocas.

Aqueles garotos eram fantásticos! Sempre inventavam coisas novas! Eram inteligentes, unidos e nunca se deixavam abalar por nada! Um deles passou pela Denise e soltou propositalmente um comentário provocativo, como se não fosse para ela: "somos grandes exploradores, isso que somos! Somos os Indiana Jones  de nosso tempo!"

A Dona da Foice


Afrânio achou uma pequena foice entre as coisas de sua finada senhora numa dessas viagens ao passado que fazia ao porão sempre que se sentia nostálgico e solitário.

Achou esquisito. Nunca tinha visto a esposa com aquilo. Era pequena e bastante semelhante àquela usada no símbolo do comunismo. Exceto que essa tinha cabo de madeira. Muito provavelmente, era usada para abrir clareiras no meio da mata e construir trilhas na relva.

Era bem leve e bem velha. Tinha uma palavra estranha desajeitada escrita no cabo. Parecia latim, mas não era (Afrânio já estudara o idioma na juventude e se lembrava o suficiente para saber que não era).

Começava a confabular sobre a procedência de o instrumento ser de um ladrão, quando ouviu um barulho vindo da cozinha. Apressou-se e foi surpreendido por algum estranho lavando seus pratos.

Pegou a mesma foice e se aproximou com cautela. Quando chegou, se assustou com o que viu.

- Olá, Afrânio! Eu estava esperando você subir e estava me entretendo com sua louça. Você não deve saber, mas não posso entrar no seu porão...

Muito Além do Livro da Loucura


Dr. Floriano,

Fiquei curiosíssimo com sua descrição a cerca do Livro da Loucura e do caminho para chegar nele. Parabenizo-o pela descoberta.

No entanto, o que me motiva a escrever é a "Máquina Onírica de Realidade Inconsistente" que levaria até o livro, se fosse cuidadosamente burlada. Desde que se dobrada a certa esquina.

Esse estranho artefato que povoa o mundo dos sonhos precisa ser muito bem estudado. Segui suas orientações em busca do livro, mas me perdi na inconsistência, tendo revivido a mesma passagem inúmeras vezes até despertar. Tentei novamente na noite seguinte e, desta vez, tomei uma dose do Pronofol. Dessa vez, quando cheguei à máquina de inconsistência, consegui manter a lucidez e avançar. Porém, descobri que a passagem ao qual você se refere não é a única! Mas a primeira de uma centena! Basta manter a lucidez suficiente no sonho para passar adiante dessa passagem para ter acesso a outras.

O problema é controlar essa lucidez a ponto de não se deixar levar e atravessar o corredor todo, entrando na máquina e voltando a seu início. Nem ao ponto de se modificar o sonho por indução de pensamento e, assim, quebrar a estrutura dele e ser conduzido ao despertar. Por isso, acho difícil a empreitada sem tomar doses perigosas de Pronofol.

Mas o ponto não é esse. Já vimos centenas de outras máquinas de inconsistência. Não são nenhuma novidade: você entra em uma estrutura familiar - muitas vezes um corredor ou uma ponte e, em algumas vezes, até mesmo uma porta comum - e se vê repetindo inúmeras vezes o mesmo momento, sem perceber, até o despertar. Porém, essa estrutura em especial que o senhor descobriu não é regular e apresenta bifurcações. Quantas são, para o que servem e até onde elas nos levam é o mistério.

A Oitava Nota


Teixeira estava apreensivo.

Queria conquistar o coração de Simone de qualquer jeito. Mas ela, que era moça fina e parecia feita para estrelar comercial de margarina, só tinha olhos para o Gonçalves, tocador de violão, muito bom galanteador e que estava começando a fazer algum sucesso com seu sertanejo universitário na cidade.

Teixeira tocava flauta doce. Nobre instrumento, mas que não costuma chamar a atenção do público hoje em dia, principalmente do feminino.

Ninguém sabe o que levou o desajeitado Teixeira a se inscrever pata tocar na tradicional festa do morango de Sobral. Penso que foi um desejo intimo de fazer afronta a Gonçalves e provar à Simone que ele podia ser melhor do que ele em alguma coisa. Fato é que esta é mais uma daquelas histórias que começam erradas e terminam ainda mais erradas pelo mesmo motivo: o coração de uma mulher que não dá a mínima para você...

Não dá para saber bem como aconteceu, mas Teixeira teve acesso aos estranhos estudos que o pobre Josué fazia. Para resumir, Josué era um açougueiro muito querido da capital que faleceu de uma estranha doença, depois que passou a estudar os misteriosos rabiscos que eram pendurados na Rua Dr. Gabriel Pizza pelos mendigos da Capital. Algo o levou a acreditar que existia uma mensagem cifrada na estranha matemática espalhada a esmo pelos fragmentos. Terminou louco e com uma enorme bolha que cobriu seu rosto todo e que o impedia de se alimentar e de respirar.

O Hóspede

Eu nunca escondi de amigos que a filha de Rodrigo e Ângela me causava arrepios. Ela em nada se parecia com nenhum deles e, das vezes que os visitei, nunca vi uma demonstração de carinho - nem uma sequer - entre eles. Sem mencionar que sua aparência era sobretudo cínica. Cínica, dissimulada, quase demoníaca. Absolutamente apagada e sóbria para uma criança de 12 anos. E sempre que os encontrava, ela usava aquele mesmo vestidinho branco estampado que fazia me perguntar se os pais compravam roupas para a criança.

Tinha o cabelo crespo comprido até pouco abaixo dos ombros, fazendo sua cabeça parecer sobrenaturalmente pequena para a proporção do corpo. Era magérrima, tinha olhos grandes e parecia que não sabia andar direito. Sobretudo, era uma menina feia. Feia e sinistra.

Éramos amigos de tempos quando ela ainda não era nascida. Perdemos o contato e só voltamos a nos encontrar quando ela já tinha 10 anos. Foi a mãe que me apresentou, se chama Rebeca. A achei tão diferente que deduzi que era adotada, então o tabu em cima do assunto era enorme.

Logicamente que nunca comentei isso com os pais, só com amigos. Mas nenhum deles a conhecia, porque não eram íntimos dos dois. Frequentei a casa deles durante um tempo e posso afirmar: nunca - nunca a vi brincar uma única vez. Dava para vê-la sentada no quarto dos pais, sobre a cama, olhando-nos conversar. Eventualmente, passava por nós até a cozinha, pegava alguma coisa do pote de biscoitos e voltava para seu torpor.

Comecei a achá-la esquisita quando, durante uma conversa, senti que ela me observava do quarto dos pais, através da porta entreaberta. Quando devolvi o olhar, ela não vacilou e continuou a me encarar. Não desviou o olhar um só momento e não mudou sua expressão.

Mas não foi nessa vez que comecei a ficar com medo dela. Certa vez fomos a um casamento e achei estranho Rebeca não ter ido (em pensamentos eu me perguntava se ela iria ao casamento com aquele mesmo odioso vestidinho branco salpicado de bolinhas laranja), mas não comentei. Na festa, o casal ficou bem reservado, enquanto eu bebi demais. Então fui convidado para passar a noite na casa deles.

Quando chegamos não vi Rebeca. Achei que ela estava na casa de algum parente. Fiquei até aliviado. Rodrigo me ofereceu algumas roupas para dormir. Fiquei na sala. De tempos em tempos ela se iluminava, porque a casa ficava em uma curva de uma grande avenida e era fatalmente iluminada pelos veículos que passavam durante a noite.

Levei um tempão para dormir. Ficava olhando para a TV (que ainda era uma daquelas de tubo) com vontade de assistir ao Altas Horas. Pouco depois de a sala se iluminar anunciando mais um veículo cruzando a avenida, noto um reflexo no vidro da TV: Rebeca parada no meio da janela olhando para a TV, atrás de mim.

Me assustei e me virei. Fiquei muito assustado porque não vi nada. Porém, sempre que eu olhava para a TV o reflexo continuava no mesmo lugar! Comecei a rir sozinho e imaginei que tinha sido drogado na festa. Fiquei com medo de acordar todo mundo na casa, então com muito cuidado me levantei do sofá e me pus em pé. Olhava ora o reflexo da TV, ora o lugar onde ela devia estar.

Meus nervos ficaram à flor da pele quando percebo Rebeca sair de sua inércia e se aproximar do sofá: subindo pelo encosto e deitando onde eu estava deitado. Mas tudo pelo reflexo, não havia nada lá de fato!!!!

Tentei ir para o banheiro sem fazer barulho. Lavei o rosto e fui para a cozinha. Procurei se tinha café na cafeteira, mesmo que amanhecido. Achei quase metade dela cheia e engoli tudo sem açúcar e sem fazer cara feia. Fiquei pelo menos 30 minutos na cozinha andando de um lado para o outro pensando, como se fosse uma criança com medo de algum inseto grande que viu no quarto. Quando voltei, a primeira coisa que fiz foi olhar para o reflexo da TV: ela continuava lá e parecia dormir.

Então, com muito cuidado peguei um travesseiro que estava caído e levei para uma poltrona mais afastada. A coloquei de forma que eu pudesse ver a TV e fiquei lá espremido tentando dormir em vão. Porque o que eu queria mesmo era ficar observando se Rebeca iria ir embora.

Então, lá pelas 3 da manhã, vejo pelo reflexo ela se levantar e ir para o quarto dos pais.

Meu coração quase saltou pela boca quando vejo a porta abrindo para o nada passar!

Depois de uns 5 minutos me convencendo se o certo era ir até lá ver se eles estavam bem, fui para o quarto e vi algo que me fez fugir no meio da noite e nunca mais voltar, nem procurá-los.

Agora, sem precisar de reflexo nenhum, vi nitidamente Rebeca agachada sobre a cabeça de seu pai, defecando sobre ela e olhando prá mim, com aquela mesma expressão vazia.

A Nova Vendedora


O pessoal todo notou a nova moça que começou a atuar no departamento de vendas.

Era um espetáculo: linda, charmosa, sempre perfumada. Cabelo liso e bem claro até a cintura, mas que parecia ter sido ondulado artificialmente. Traços delicados e corpo frágil, mas com presença marcante: era uma daquelas loiras que ficam muito bem de óculos de sol! E daqueles bem grandes! Tinha aquele semblante de independência e poder que só te faz chegar perto se tiver uma alto-estima de deus grego!

Chegava todas as manhãs dirigindo um Azira, típico veículo grande que a sociedade inventou que é coisa de homem (e bem sucedido).

Trancava-se em seu escritório sem falar com ninguém. As pessoas comentavam que as coisas melhoraram muito quando ela chegou. As vendas decolaram! A moça era muito boa no que fazia. Sua presença era tão forte e tão marcante que até o "povo do cantinho" (turma reacionária preconceituosa que existe em toda empresa que se alimenta de ideias fascistas e que adora reclamar e falar mal dos outros) evitava o chavão machista de que a única forma de uma mulher jovem e bonita crescer em uma empresa era sair com o patrão.

O Placebo

Era pontualmente 10 horas quando uma senhora de meia-idade entrava com o filho de 15 anos no consultório da "Clínica de Estudos Avançados da Alma", um trabalho sócio experimental da Universidade do Sobral.

- Vejamos... e o que a senhora tem?
- Eu nada, doutor. É meu filho.
- E o que ele tem?
- Está apático, doutor. Só come e dorme o dia inteiro. Ele não joga bola como os outros garotos e nem sai "de balada" à noite. - respondeu conotando o termo "de balada", ressaltando a estranheza de ser usado por alguém de sua idade.

O médico parecia apático e desinteressado. Já sabia o diagnóstico no momento em que pôs os olhos nos dois entrando no consultório, mas não queria parecer pragmático em dar um diagnóstico sem realizar um exame antes - E também para fazer a mulher acreditar que o tempo dela não estava sendo desperdiçado.

Ele olhou para a cara sonolenta do rapaz que aparentava ter ainda mais sono. Decidiu teatralizar um pouco porque, no fundo, também achava que o rótulo da sua especialidade soava um pouco apelativo e bizarro. Era como se tentasse provar para os pacientes que, a pesar do que parecia, também era médico. Então pegou um abaixador de língua...

- Diga "aaaaaahhh".

O Livro da Loucura


Logo de cara, sentencio: o Livro da Loucura não existe.

É quase como desses livros abomináveis que foram inventados pela literatura de ficção, tais como o Necronomicon de H. P. Lovecraft e seus Manuscritos Pnacóticos: são descritos com tantos detalhes que muita gente acredita que realmente existem.

No entanto, afirmo: folheei suas páginas...

O único exemplar do Livro da Loucura tem o tamanho de uma enciclopédia. Tem a capa dura, vermelha e amassada, sem nada escrita. É emendada por uma fita adesiva bem no meio, de cima-a-baixo lugar onde, supostamente, Fernando Pessoa teria a quebrado quando arremessara contra a parede. (Obviamente, remendada por outra pessoa, em uma época bem mais recente).

Tem cerca de cento e vinte páginas. Não sendo, portanto, um livro grande. É escrito em uma tipografia alienígena, não usando os símbolos conhecidos do alfabeto, da língua japonesa, chinesa, ou de qualquer outra presente nos mais tradicionais dicionários e tradutores. Em vez disso, a descrição mais a próxima é de que sua "escrita" se baseia na língua falada pelas criaturas do éter. A que só os vultos e outros seres com habilidade de comunicação que habitam seu abismo mais profundo pronunciam.

Seu conteúdo é literalmente subjetivo: embora conceitualmente o mesmo, as palavras se moldam para parecer ser destinadas ao leitor. Razão pela qual ser impossível, ou pelo menos desaconselhável, ser lido por mais de uma pessoa ao mesmo tempo.

Como fiquei com medo de espelhos


Não, não vá embora! Fique aí! Vou te contar um negócio!

É rápido! Não se preocupe, não vou tentar te vender nada! Não vai levar dois minutos! É a história sobre como fiquei com medo de espelhos!

Não! Não é brincadeira! Você pode imaginar com é difícil para um homenzarrão deste tamanho - que até já domou o touro na unha! Que já escalpelou “cabra safado metido a besta” sem titubear! - admitir um troço desses!

Começou na minha meninice, quando eu não era mais que um botão, lá no subúrbio do Sobral. Meus amigos e eu andávamos pela rua, quando atravessamos uma loja de televisores. Estava passando o Jornal da Tarde na TV da vitrine e vi, estupefato, o efeito da vinheta de um anúncio de um programa de variedades. Faziam aquele efeito legal de uma câmera filmando uma tela de TV que exibe a imagem filmada pela própria câmera, formando infinitas imagens.

Ficamos com aquilo na cabeça. Era um menino muito criativo. Comentei com minha professora que me falou que dava para fazer o mesmo truque com espelhos. Cheio de curiosidade, perguntei para minha pobre mãezinha se ela tinha espelhos para eu e meus amigos brincarmos e ela me respondeu que não prestava brincar com eles. Dizia que provocar imagens infinitas era um jeito de abrir uma janela para o outro mundo.

O Caldo

Daqui a dez anos, muitas verdades serão revisadas.

Daqui a dez anos...

Uma das coisas que me lembro de daqui a dez anos, foi o grande alívio com que a sociedade recebeu a resposta ao problema da falta de espaço nas ruas, hoje conhecido como "trânsito". Foi quando a novata montadora "Suzano" anunciou o primeiro veículo a ser produzido que era maior - bem maior - por dentro do que por fora. Usando uma técnica que chamou de "Espaço Negativo". É conhecida como sendo o primeiro uso prático de um conceito obscuro da matemática chamado de "equação do zero". Logo, a técnica começou a ser usada nas fábricas, nos prédios e até mesmo nas casas; resultando em ruas muito mais largas, ocupadas por veículos muito mais curtos e estreitos.

Mas não foi só isso que apareceu daqui a dez anos! Houve também a criação do "Estado da Platina", um novo país que nasceu a oeste da Argentina; a descoberta de pelo menos dezesseis novos elementos químicos na natureza que passaram a fazer parte da tabela periódica dos elementos; a definição da ONU como Governo do Mundo reconhecido por todos e com poderes de exército e polícia e a privatização de todos os serviços públicos em todos os países. Daqui a dez anos, todos falam o Português falado em Angola.

Daqui a dez anos, todo mundo é bonito e cheira bem o tempo todo. Ninguém mais envelhece. Isso, se por um lado torna a vida mais fácil, por outro torna os velórios ainda mais tristes. Você pode ter vivido cem anos, mas sempre parecerá que viveu só vinte e dois e morreu na flor da idade.

Sem Olhar Para Trás

Sem Olhar Para Trás

Acho compreensivo ser julgado pelas pessoas que estão de fora e analisam a situação como quem vê o final de uma novela de TV. Acho até aceitável que muita gente queira acabar comigo ou fingir que não existo. Mas não aceito que gente instruída como vocês me atirem pedras, como se não soubessem com o que nós estávamos lidando.

Aceito até que me chamem de covarde ante as circunstâncias. Mas não vou aceitar jamais que me chamem de mentiroso quando dão a entender que deturbo os fatos em benefício próprio.

Descemos as cavernas até bem fundo, onde sabíamos ser mais ou menos onde ela morava. Acho que ficamos descendo no escuro por pelo menos uma hora e meia...  Avançamos até onde a luz podia alcançar e seguimos todas as instruções de prosseguir para além do bolsão de vácuo. Muitos, dos poucos audaciosos que se aventuram nessa descida, desistem nesse ponto porque é quase impossível respirar.

O caminho é muito difícil. Você vive descendo. Tem tantos caminhos estreitos que, se você parar para pensar na volta, não completa a ida. Em certo ponto, as coisas que lembram vida desaparecem. Nem insetos, nem água você acha. É preciso mesmo estar muito determinado para prosseguir até o fim. Até as estalactites assumem formas soturnas e a sombra que projetavam através das lanternas que Alessandra e eu carregávamos formavam curiosas formas monstruosas e parecia algum tipo de aviso.

"Sim"

"Sim"

Aconteceu em uma chácara abandonada na periferia do Sobral. Já ouvi muitas histórias sobre esse lugar. Dizem que a cidade cresceu em volta da Universidade em que estudo. Sobral é ainda é bem interiorana. Este é meu primeiro ano.

Os alunos veteranos decidiram dar uma festa de boas vindas nessa chácara. E é por isso que estou contando essa história. Eu não conhecia ninguém. Fui mais mesmo para fazer amizades. Mas não fiz nenhuma.

Não sei se foi porque fiquei muito impressionado com uma história que ouvi falar quando me mudei para Sobral... era uma lenda absurda sobre uma tropa do exército brasileiro  que tinha feito uma experiência macabra com uma fazenda da cidade... diziam que, durante a revolução, um comandante de uma tropa ficou tão insatisfeito com a recusa do dono da fazenda em abrigar seus soldados que, quando a guerra tinha acabado, voltou para se vingar em segredo. Diziam que ficaram pelo menos 1 ano mantendo-a sitiada como refém. Abusavam das mulheres e filhas dos fazendeiros e colonos, matavam os jovens e misturavam à alfafa dos cavalos a carne triturada deles, aos poucos, para tornar os cavalos carnívoros.

A Equação do Zero

Reza a lenda, entre alguns catedráticos no estudo avançado de física da Universidade do Sobral, que existe uma equação capaz de responder a tudo o que se desconhece sobre a natureza. Não apenas às inconsistências que enchem a mente dos pesquisadores, mas também a todo o tormento que aflige a alma humana. Capaz de decifrar o sofrimento, capaz de equacionar o amor, de prever tragédias, tendências de comportamento, prever o futuro, descobrir o passado, enganar a morte e explicar a síntese da existência. Seria o elo que falta na explicação de tudo o que existe e do que não existe também.
A equação seria capaz de unificar todos os conceitos, teorias filosóficas e de todos os conjuntos matemáticos, independente de contextos. Abordaria basicamente o estudo do zero e do caos.

Chamam-na de "A Equação do Zero". Surgiu de uma especulação sobre um fragmento de um manuscrito do século XII que teria sido encontrado. Pertenceria ao célebre matemático indiano Báskara II, que elaborou a fórmula que leva o seu nome, decifrou o enigma da divisão por zero, entre outros. Contudo, a existência do fragmento nunca foi comprovada.

Resgate

Este é um breve relato de nossa pequena expedição à Reserva do Sobral e que teve como objetivo o resgate de 4 caçadores que, a pesar de participarem de atividade ilegal, não podiam ser deixados ao léu no meio da selva.

Somente um conseguiu ver novamente o sol. Dois deles foram localizados de maneira lamentável, pouco ou nada lembrando homens. O outro não foi localizado. De nosso pessoal, apenas uma veterinária foi gravemente ferida. E há de se frisar uma importante e inusitada descoberta, que foi o autor do ferimento de nossa veterinária. E, possivelmente, o autor da morte dos caçadores (pelo menos segundo o que sobreviveu).

A companhia dos caçadores deixou a cidade para caçar uma certa espécie de papagaio rara e fácil de vender. Entraram na reserva no dia 15 do mês passado por volta das 5h30 da manhã e ficaram perdidos por cerca de 20 dias. O sobrevivente relatou que a trilha era conhecida por todos, mas parecia que mudava sobrenaturalmente seus contornos para fazê-los se perder "por vontade própria". Sons de animais desconhecidos e - até certa altura - de veículos só encontrados na cidade foram ouvidos no coração da selva, trazendo grande confusão e aflição a todos. Indo além de tudo que se conhecia.

Três nós no Barbante

Dr. Floriano, saudações.

Meu nome é Horácio. Sou um empresário e lido com uma pequena cadeia de supermercados do interior paulista. Uma pessoa ligada a mim vem sofrendo terríveis manifestações sobrenaturais e por isso busco seu auxílio.

Recebi seu e-mail através do Peixoto Andrade. Ele me contou do seu extenso conhecimento nas áreas da psiquiatria e também nas do ocultismo.

Contou-me também que o senhor anda recluso e vem rejeitando trabalhos que não estejam relacionados à psiquiatria. No entanto, suplico que pelo menos leia meu e-mail até o final, pois lhe garanto que não encontrará caso paralelo nas áreas ocultas que domina.

O Anúncio

Paulo reuniu todos os amigos e familiares em um antigo salão de festas que estava para se transformar em uma pequena fábrica de tecidos. Ele tinha um anúncio importante para fazer. A data coincidia com seu aniversário.

Todo mundo compareceu em absoluto suspense. Embora pairasse no ar uma suspeita de anúncio de casamento.

A reunião tinha mesmo clima de festa: havia tapete vermelho na entrada, fotos dele de todas as épocas em tamanho grande, um grande livro aberto em que o convidado podia transmitir uma mensagem e criados servindo coxinha, bolinho de queijo, refrigerante e cerveja.

Seu atraso transmitiu uma certa presunção pelo exagero no suspense. Quando chegou, veio trajado num terno branco e calçado impecáveis sapatos recém engraxados. Tinha também gel no cabelo. Atraiu grande atenção para si quando subiu no palanque enfeitado, preparado normalmente para formaturas. Havia um microfone num pedestal que ele logo tratou de se apossar. Cumprimentou sorridente algumas pessoas como se fosse um astuto político e esperou silêncio, sem perder o brilho no rosto.

Xadrez Negro

- Pensando em quê? - Perguntava Natália,  enquanto colocava o cavalo no tabuleiro  depois de notar, pelo espelho, que Maurício permanecia muito tempo quieto no mesmo lugar.

- Em nada especial, só que nunca vi esta merda dar certo. - Respondia sem coragem, arrastando as palavras num ritmo que mal dava para entender, depois que puxou uma carta e pareceu não gostar do que viu. Então, retirou um de seus peões, praguejou alguma coisa prá si mesmo - possivelmente "merda" - e tocou o sino.

- Acho que você devia pedir alguma coisa cara em vez dessa besteira! - Ao contrário dele, Natália deu um risinho quando tirou uma carta que guardou em separado e escolheu um cavalo e uma torre para se juntar a seu exército. Deu um tapinha na cuia de água para molhar os dedos, se benzeu de um jeito estranho e tocou o sininho.

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