A Lenda de Nonomon

As pessoas que nasceram em Sobral guardam alguns hábitos engraçados. A cidade está crescendo e vem muita gente de fora, mas com poucos minutos de conversa é fácil distinguir um nativo Sobralense de uma pessoa que veio de fora.

Um dos mais divertidos é o costume que as pessoas têm de bater na boca e dizer “Nonomon“, levantando os olhos para baixo, a cada vez que se diz uma palavra que tenha alguma relação com morte.

A explicação para esse costume está em uma lenda urbana da região: a da Criatura Nonomon. Existe um cem número de variações para a história, mas, em geral, todas tratam de um ser hominídeo de três metros de altura, esguio, sem pelos no corpo, com uma pele muito fina e com um “X“ no lugar do rosto. Ele habitaria o porão de toda casa que tenha piso de madeira.

Essa introduçãozinha se mantém na maioria das histórias. Também, na maioria delas, Nonomon seria o responsável pelo ranger da madeira à noite em residências desse tipo. Cujo principal motivo seria um teste - que varia de história para história - para quem estivesse tentando dormir. Se o ouvinte não passasse dele seria levado embora para sempre, habitando as frestas da madeira e fazendo rangidos como Nonomon.

No complexo de cavernas que a cidade promove com orgulho devido a seu enorme potencial turístico podem ser encontradas escritas cuneiformes diferentes de qualquer outra parte do mundo. Há quem associe algumas delas à origem da lenda. Uma série de criaturas muito altas, magras e com rosto vagamente semelhante a um “X“, estimula a imaginação ao levar a crer que a região um dia tenha sido habitadas por criaturas assim. Talvez à centena de milhões de anos.

A Irmandade Paulistana, que tem uma ramificação na cidade, leva muito a sério essas lendas - bem como todas as demais que permeiam a cultura de Sobral. Mas somente quem frequenta a ordem, ou tem alguma ligação muito íntima com a Universidade do Sobral, têm acesso a certos documentos históricos. Até mesmo alguns jornais muito antigos só podem ser consultados no arquivo da prefeitura sob supervisão presente. Alguns dos quais noticiam desaparecimentos em massa e sumiços de bairros inteiros através da história.

As crianças costumam desenhar a criatura nas aulinhas de arte. A lenda está tão enraizada na cultura de Sobral que muitos pais costumam ameaçar seus filhos de serem sequestradas pela criatura se não comerem direito, ou ir para a cama no horário.

Poucas são, no entanto, as pessoas que testemunharam um fenômeno real e que conseguem destacar ficção da realidade. Denise é uma delas. Vendedora de una pequena loja de flores próximas da rodoviária quando era pequena, Denise tinha 9 anos quando seu pai começou a lhe olhar diferente.

A casa modesta, sempre mal iluminada e úmida, sempre tinha o clima depressivo. A mãe, “rata de igreja“, nunca faltava a um culto e era muito boa em apontar o dedo para a vida alheia, mas negligenciava a sua fazendo vista grossa aos excessos do marido. Não gostava dele. Na verdade, nunca gostou. Mas manteve a família de fachada para garantir o confortável status-quo da mediocridade.

Havia uns quadros desbotados espalhados pela casa. Denise nunca se preocupou em saber o que era aquela gente, só sabia que era gente morta. A exceção da foto amarelada de casamento dos pais, que pousava na parede acima da TV, mostrando um casal tão apático que mais parecia uma foto para documentos com duas pessoas pousando ao mesmo tempo.

O pai de Denise a educou com gritos e ameaças, mas foi a mãe quem ensinou a ter medo de Nonomon. - Em Sobral, até os padres e pastores dizem “Nonomon“ quando falam de morte. Até mesmo durante os cultos.

Se foi a mãe quem ensinou a filha a ter medo da entidade abissal, foi o pai quem mais explorou esse temor. Não mais que uma lenda para ele - assim como para todos os adultos de Sobral - usava a história sempre que queria forçar a menina a fazer algo que não queria. Não havia diálogos, só ameaças da forma mais irracional e machista possível. Denise cresceu ouvindo “me obedeça ou vou te dar prá Nonomon levar!“ aos montes. Enquanto as outras crianças foram criadas com “papai do céu tá vendo“ para se sentirem não só instigadas, mas paternalmente protegidas e confortáveis, Denise só conhecia a ideia de um ser irracionalmente assustador que não tinha outro propósito além de punir o que não cabia na equação de seu pai.

Quando fez 9 anos, seu pai começou a lhe olhar de forma maliciosa. Começou a fazer contas e calculou que, em alguns anos, a menina chegaria à puberdade. Fez um raciocínio tosco e infundado dos gastos que teve na criação dela e julgou que lhe devia. Como ela nunca teria condição de lhe pagar, achou que poderia exigir o pagamento de outros meios e que sua autoridade e poder eram legítimos. Foi com esse cálculo abominável que o pai de Denise chegou à conclusão que era justo que ela lhe satisfizesse sexualmente. 

Aos poucos tentou ser mais afável com ela, não sem que parecesse assustadoramente falso e pretensioso. Às vezes trazia presentes quando voltava do trabalho e, na sua mente torpe, achava que isso aumentava ainda mais a dívida que ela tinha.

Rapidamente a paciência foi substituída por ansiedade. E, quando bebia, oferecia gentilezas dignas de um doente do pior dos hospícios. Como na vez em que achou que a menina não se lavava direito e propôs lhe ajudar a tomar banho...

Denise vivia em estado de nervos. Mesmo jovem, era esperta o suficiente para perceber o que estava acontecendo. Durante à noite, mal pregava os olhos porque fingia dormir ao notar o pai sondando várias vezes à noite seu quarto, tomando coragem de fazer alguma coisa e, depois, desaparecendo por de trás do vão da porta.

Porém, um dia, a paciência acabou. E o pai de Denise perdeu totalmente as estribeiras. Teve um dia de cão no trabalho e perdeu um dinheiro maior do que esperava no dominó. Então, encheu a cara com a pinga mais barata que achou, tomou duas cápsulas da sidelafrina e voltou para casa exalando raiva, suor e tesão. Nem tomou banho, se sentou com as calças arriadas na cama da filha e a esperou voltar da escola. Quando Denise chegou foi surpreendida com um grito desafinado, cheio de ódio e testosterona: “VENHA AQUI QUE ESSA MOLEZA ACABA AGORA!!

A menina gelou na alma. A casa estava escura e abafada. Quando dobrou a sala, viu o corredor até seu quarto e aquele pobre diabo sentado bufando.

Paralisada, não sabia o que fazer. Ele repetiu “VENHA CÁ E OBEDEÇA A SEU DONO!!“ a menina deu alguns passos para frente e pensou em correr para não deixar o pai ainda mais nervoso, mas descobriu da pior maneira uma armadilha tosca e improvisada, feita com um rodo e algumas toalhas molhadas no caminho, fazendo sua perna dar um giro de noventa graus em torno do eixo e descendo todo o peso do próprio corpo sobre sua delicada estrutura locomotora, a fazendo torcer o tornozelo pela primeira vez.

Mal podia se mover. No mesmo instante o tornozelo inchou tanto que fez a meia usou o dia todo parecer nova, da forma como que esticou e espalhou as manchas naturais de uso. Tentava segurar o choro, mas não conseguia. De repente, não sabia mais por que motivo chorava. Se pela dor, ou pelas intensões nefastas do próprio pai que, transtornado, gritava. Ela não entendia todos os gritos, tamanha a agonia que sentia com o primeiro torção do tornozelo da vida.

O pai de Denise deve ter achado que os gritos e insultos não tinham rebaixado o suficiente a estima da menina. Queria que ela se esforçasse contra suas capacidades até ele e o obedecesse além do que podia aguentar. Isso sim seria um sinal de submissão completo. Então se lembrou das ameaças da primeira infância que tinham cessado quando decidiu ser mais amável com a filha e recomeçou a incluir Nonomon nas suas ofensas.

“VENHA CÁ SE NÃO NONOMON VAI PEGAR VOCÊ!!“.

Quando percebeu que o torção da menina era grave, decidiu ir até ela. Não diminuiu o tom nem um pouquinho, nem sentiu pena dela. A cachaça ajudava a não sentir absolutamente nada além do que sentia o próprio corpo, no efeito químico mais egoísta que um homem pode sentir, depois da fome extrema. A cada passo ele continuava “NONOMON NÃO GOSTA DE VADIAS! VENHA CÁ LAVAR SUAS MÃOZINHAS SUJAS!!!“ e avançava tropeçando as ameaças de outrora. Quando estava bem próximo a levantou segurando pelo braço, a levou até o quarto ao lado e a atirou na cama de casal, fazendo com que machucasse as costelas com o impacto contra a guarda da cama.

O homem se aproximava com os olhos vermelhos como fogo e repetindo “NÃO CHORE OU NONOMON VAI QUEBRAR SEUS OSSINHOS FEDIDOS!!“. E se aproximou, fechando a porta atrás de si com extrema violência, estilhaçando as últimas linhas de defesa de sua força de espírito. Ele via a menina chorar olhando para seu rosto monstruoso e, mesmo assim, não sentia nenhum remorso.

Enquanto se aproximava semi-nú, cantava uma canção de ninar inventada “Nonomon vai o que quiser com a garotinha suja e fedida. E se ela contar prá alguém, Nonomon vai cortar o seu pescoço!“, revelando um facão afiado das costas.

Quando falou “Nonomon“ pela sétima vez, algo totalmente inesperado aconteceu. Um corte roxo apareceu em pleno ar, ao lado do armário. Como se a realidade de repente sangrasse. E um forte cheiro de terra impregnou no ar.

Algumas gotas de um óleo muito negro e pegajoso escorriam pela fenda do ar e pingavam no chão, formando algum tipo de nata. O corte aumentava e alguma coisa grande e encharcada começava a se pronunciar.

A menina começou a chorar diferente. Olhou atônita para aquilo e pareceu esquecer o terror paterno e o tornozelo torcido. O pai demorou um tempo para perceber, depois ficou tão paralisado de medo que suas pernas não obedeceram o comando de “saia já daí!!‘“.

Logo o corte abriu bruscamente e algo grande, do tamanho de um cachorro vira-latas adulto, saiu envolto a um tipo de placenta e estatelou no canto da cama para cair no chão, fazendo um grande barulho e sujando a colcha da cama e todo o chão. E então a inconsistência começou a se espalhar como uma bactéria e cobriu como um manto toda a realidade percebida por eles, apagando como uma bomba todo o machismo e a irracionalidade que permeava o lugar, mas multiplicando outro sentimento que já existia: o medo. E muito medo.

A coisa se contorcia no chão e ia se livrando da placenta. Aquilo parecia muito frágil e ia emergindo e crescendo ao mesmo tempo. A primeira coisa que deu para ver emergir foi um braço muito fino e comprido. Depois surgiu uma cabeça adulta, onde só a nuca surgia do meio de todo aquele amontoado de ectoplasma. Aos poucos a figura de um homem foi surgindo, e a coisa ia crescendo e tossindo. Aos poucos ia se livrando do muco preto. O rosto foi sendo descoberto e a menina gritava ao reconhecer a tão temida criatura, lhe apontando e escondendo a cabeça no travesseiro:

- É NONOMON!!!

De repente, as palavras sumiram da boca do pai de Denise, como se fossem letras de canções antigas conhecidas que não voltam mais à tona. Em ocasiões normais ele culparia a menina. Diria que ela conjurou a coisa, que era uma bruxa. Mas aquela não era una ocasião normal e ele sabia que aquilo nada tinha a ver com a bebida. Gelou até a espinha quando reconheceu o “X“ no lugar do rosto da coisa. Parecia prensada com ferro em brasa. Era terrível porque parecia posto ali. Parecia que censurava o rosto da criatura. Era como se o que tivesse ali fosse uma blasfêmia tão grande que foi divinamente amputado dali e marcado para advertir quem olhasse. E o formato da cabeça era muito bem desenhado que não deixava dúvidas de que era um homem.

Nonomon não parava de crescer. Começou a ecoar um som estranho, semelhante a uma sirene de emergência de alguma usina que anuncia algum vazamento perigoso, mas os espasmos diminuíam. Uma das pernas ficou mal-formada e era muito mais forte que a outra.

O pai de Denise caiu sentado quando Nonomon já tinha dois metros e começava a se mexer em sua direção. Ele ainda continuava a crescer. Mas, de repente, a perna disforme ficou tão pesada que afundou no piso de madeira e dificultou seus primeiros passos, fazendo Nonomon a arrastar com força e mancar, enquanto estourava todo o piso, produzindo um ruído horroroso de móvel velho que é arrastado.

A menina só gritava sob o travesseiro. Quando ouviu o ranger da perna de Nonomon ser arrastada, pensou em dar uma espiada para saber se tinha alguma escapatória, mas evitando ao máximo cruzar o olhar com a criatura. Quando o fez, viu um enorme e incomum gato preto sob a cama, lhe encarando e tapando a visão. Viu em seus olhos o reflexo de um calendário promocional que ficava do outro lado do quarto, onde só as três primeira palavras da frase “NÃO SE PREOCUPE, COBRIMOS QUALQUER OFERTA!“ era refletido. E a menina se sentiu inexplicavelmente mais calma, interpretando aquilo como uma forma de comunicação sobrenatural.

Nonomon já estava formado, mas ainda crescia. Logo alcançaria o teto. Ele continuou a se mover, agora de forma mais independente, mas ainda mancando muito enquanto arrastava uma das pernas que era descomunalmente desproporcional e pesada em relação a outra. O rombo no piso trilhava seus passos. Ele ía em direção ao pai da menina que, só agora, puxava as calças arriadas para proteger a genitália.

O homem se lembrou do revolver que guardava na cômoda. Mas ele precisava passar pela coisa para chegar até ela. A única arma que tinha nas mãos era a faca que trazia consigo para violentar a menina. Quando Nonomon estava muito perto, pegou a faca e tentou cortar o próprio pescoço tamanha era sua percepção de impotência ante da criatura, mas Nonomon deteve sua mão. Não deixaria que tirasse a própria vida. Não antes de fazer o que vêio fazer...

O som que vibrava do peito de Nonomon parou por um instante para ser substituído por um possível som de pigarro terrível, diferente de tudo o que de imagina. Como se algo em suas entranhas vibrasse muito alto e esmigalhasse algo ossudo também, fazendo muitos "cracks".

Então, o homenzinho aterrorizado, percebeu que seria torturado e começou a desferir chingos que normalmente só ofenderiam a homenzinhos muito minguados como ele. Nonomon sentou sobre ele e o imobilizou. Em seguida abriu os botões da camisa delicadamente, sem parecer dar a menor importância aos chingos vulgares dele. As ofensas aumentavam de altura com alguns chutes na virilha do monstro, sem que surtissem nenhum efeito. Com o peito do homem desnudo, Nonomon fez calmamente um círculo perfeito com uma estrela no meio, usando as garras, fazendo feridas que não sangravam, mas ficavam muito vermelhas e inchadas.

Os chingos viraram súplicas e o homem começou a desafinar a voz enquanto o fazia. Ele viu Nonomon escancarar o enorme “X“ que substitui o rosto revelando uma anatomia alienígena que poucos homens da ciência imaginaram ver. De dentro da bocarra, quatro larvas foram regurgitadas, Famintas, penetraram em algumas das pontas da estrela. Os chingos, depois súplicas, se tornavam gritos de dor e agonia.

Enquanto as larvas abriam túneis subcutâneos no abdômen do homem, devorando ossos, estourando músculos, Nonomon vomitava um líquido azul no rosto dele, para garantir que ele não desmaiasse ou morresse com a dor e, assim, nunca tivesse alívio.

A menina, abruptamente se viu levada por uma frota de corujas, vindo repentinamente do armário, para fora do quarto. De lá, correu para fora da casa e procurou abrigo com vizinhos.

Ainda no quarto, quando se fartou com a agonia do homem, Nonomon escarrou aquele grito pavoroso novamente e as larvas pararam de se mexer dentro do homem. Então, como se tivesse livrado de um incômodo catarro, Nonomon proferiu algumas palavras em um português extremamente carregado de sotaque. Era um português tão mal pronunciado que parecia um espanhol falado errado, com estalos entre as vogais e “L“ demasiadamente prolongados.

E, enquanto o fez, segurou a cabeça do pobre homem em sua direção para garantir que ouvia cada palavra. Depois viu os olhos do moribundo se encherem de um vermelho desesperador, ao ser arrastado sobrenaturalmente atrás de si por uma fresta do piso de madeira, da espessura de um parafuso, para as profundezas das dimensões do éter.

Não se sabe muito bem o que acontece com as supostas vítimas de Nonomon depois que são levadas e nem por quê motivo o são (ao menos que você acredite em uma das versões da lenda que o povo conta). Mas é certo que nem todo o sofrimento e nem toda a dor que o antes perverso pai de Denise passou o fizeram esquecer daquelas enigmáticas palavras, tampouco o permitiram decifrar seu misterioso significado, ou o motivo de serem proferidas. Penso que são enigmáticas porque carregam, além de um pouco de sarcasmo, uma certa malícia e são abertas a muitas especulações.

“A DIVERSÃO NUNCA TERMINA NO PAÍS DOS OTÁRIOS“.

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