Primeira Materialização do Livro da Loucura

Universidade do Sobral, 17 de Janeiro de 2011

Depois que montei e liguei a pequena e desproporcional máquina de pêndolos a partir das cartas que encontrei do Dr Floriano, um misterioso eclipse no meio do dia aconteceu, engolindo totalmente o sol e desenhando uma inconsistente aurora boreal nos céus de Sobral que muita gente acha até hoje que era de sangue. Muitos eventos menores aconteceram de forma isolada. E, a despeito de minhas advertências, o Departamento de Estudos Avançados da Alma achou por bem tocar o estudo adiante, sobre o pretexto de descobrir mais sobre a máquina antes que Floriano o fizesse e a usasse, só que em escala e potência originais.


Enfatizo que só consegui desligar a máquina destroindo-a. Uma vez ligada ela entra em movimento perpétuo. Fiquei tão apavorado que não pensei nem em tirar medições. Mas calculo que, mesmo daquele tamanho, era capaz de produzir alguns Mega Watts de energia. Não dá para calcular a quantidade se a máquina tivesse as proporções originais.

Quem acompanhou meus relatos anteriores sabe que tomei conhecimento do propósito do invento e em quais circunstâncias ele foi concebido. Mas nunca é demais lembrar o objetivo principal de Floriano que era o de materializar o Livro da Loucura. Livro esse que só existe no mundo dos sonhos e que pode ser lido por qualquer um que siga um conjunto mínimo de orientações para chegar até ele, mas somente durante o sonho. É de conhecimento dos leitores mais antigos que folheei-o em meu próprio sonho e não me atrevi a ler em detalhes suas páginas para não correr o risco de contrair algum tipo de demência, como é comum à algumas pessoas pouco preparadas a fazê-lo.

Não tomei mais conhecimento do obcecado Floriano desde então. Penso que sua mente é tão astuta que ele possivelmente bolou toda a cadeia de eventos que provocou a Universidade o desejo de reconstruir a máquina. Penso que meu breve e infeliz experimento nasceu desse mesmo propósito. Naquele tempo, eu recebi um rumor de alguns estudantes que tentaram invadir sua residência. Eles tentavam verificar o tamanho da evolução com que as construções das estranhas máquinas que aparecem no Capítulo III evoluía. Infelizmente Floriano tornara-se tão habilidoso em manipular os sonhos que, incapaz de decorar detalhes suficientes enquanto dormia, conseguia repetir o mesmo sonho várias vezes só para despertar e desenhar mais algum aspecto dessas máquinas. Prefiro pensar que a maioria dessas máquinas nunca chegou a funcionar de verdade, pois não há quem possa ter tanta precisão após o período letárgico do despertar do sono (exceto a que construí em proporções menores), mas já vi máquinas estranhas em alguns laboratórios proibidos do Campus que certamente foram copiadas dessas invasões, como pequenas e complexas máquinas formadas por madeira e barbante. Através das quais, segundo relatos de alguns, eram capazes de transformar galinhas vivas em ouro.

O Capítulo III do Livro da Loucura é inteiramente escrito em algum tipo de matemática oculta. Incluí no meu relato original que essa matemática inclui cálculos escondidos que resultam em resultados conceituais que dependem da hora em que são calculados e de quem os calcula. Em dado momento, adquirem consciência e se comunicam com que os calcula. Sendo assombrosa e ao mesmo tempo fascinante. É também nesse capítulo que estão presentes os desenhos dessas máquinas, mas sem que seu propósito esteja nem mesmo minimamente descrito. 

Tenho grande receio de que essas geringonças venham a ser reproduzidas na realidade. Mas meu maior temor sempre foi se o próprio Livro da Loucura assim o fosse. Já não fosse suficientemente perigoso imaginar o que aconteceria se o Capítulo III viesse a público e que qualquer mente inescrupulosa passasse a construir essas aberrações e a colocar em prática aqueles cálculos nefastos, me enlouquece imaginar o que aconteceria se os capítulos I e IV fossem materializados, pois tal ato poderia colocar em cheque a própria estrutura da realidade.

Muito já se escreveu sobre esses capítulos e eu não seria capaz de acrescentar algo mais detalhado do que alguns artigos disponíveis na própria biblioteca da Universidade do Sobral, até mesmo naqueles volumes que são fornecidos livremente por ser considerados inofensivos e que não exigem vigilância constante. Então farei um breve resumo para atualizar quem não esteja a par desses assuntos.

Os capítulos I e IV do Livro da Loucura são os mais misteriosos porque são conceituais. Seu conteúdo muda conforme o leitor. Sendo, por esse motivo, impossível ser lido por dois sonhadores ao mesmo tempo dentro do mesmo sonho. São de grande mistério porque não se sabe ao certo seu propósito. O primeiro descreve a própria biografia do leitor, como se ele mesmo a tivesse escrito. Contém notas de rodapé, pensamentos e detalhes íntimos e sempre termina na morte dos seus pais. O quarto, por sua vez, consiste de um conjunto de fotos aleatórias do leitor que, na verdade, nunca foram de fato tiradas. Um detalhe que salta aos olhos é que é muito claro que a última foto foi roubada, mas não é deixado nenhum tipo de pista sobre o que existia nela. (Me recusei terminantemente a ler qualquer um desses capítulos e tudo o que sei sobre eles foi fruto da leitura de alguns artigos da biblioteca. E não tenho nenhum receio de dizer que não tenho nenhuma curiosidade em fazê-lo, nem como o de admitir que me apavora imaginar o que tenha reservado em seu conteúdo para mim).

Como esses capítulos são conceituais e são supostamente feitos para se ler durante o sonho, me pergunto o que aconteceria se a mente doentia de Floriano fosse capaz de materializar esse livro no mundo real. Esse é meu maior medo. Tenho certeza de que, inteligente como é, isso já passou pela cabeça dele. Ele deve ter calculado todos os riscos e sua obceção o impede de dar fim a essa busca.

Meus medos, contudo, parecem estar vindo a tona quando o blackout da semana passada, acompanhado de risos histéricos e aplausos vindos dos laboratórios secretos da Universidade, se fizeram ouvir por todos os corredores.

Disparei em correr pelos escuros corredores sem pensar, meio que prevendo um terrível acontecimento. Quando escancarei uma porta e me deparei com uma sala que em nada se parecia com a de um experimento científico: estava toda avermelhada, cercada por velas por todos os lados, algumas aromatizadas. Estava repleta dos estudiosos mais influentes da sociedade de Sobral e da Universidade. Homens respeitados e da mais alta credibilidade, nús em sua maioria, reunidos em círculo e em êxtase com o êxito obtido. Pareciam assombrosamente loucos. Acho que muitos estavam dopados, porque senti um estranho ar viciado e tive a impressão de ter reconhecido o cheiro de Pronofol. No meio da sala, ela. Inconfundível: a máquina de pêndulos que construí estupidamente no meu primeiro relato. Estava em escala original agora: enorme, monumental. Ocupava toda a sala. Seus pêndulos faziam o movimento perpétuo, numa dança profana e proibida. Gerava um campo eletromagnético que deve ter provocado o blackout no prédio, além de ter bagunçado todos os papéis que estavam sendo usados. Haviam inúmeros ali. Eram rabiscos e cálculos. E eu reconheci a letra de Floriano em diversos deles.

Havia um animal morto muito estranho em frente à máquina do tamanho de um cavalo ao lado de um homem dormindo. Uma pessoa totalmente protegida, lembrando muito um apicultor, enfiava suas mãos no fundo das entranhas do animal e tirava um papel muito sujo de dentro. Um segundo homem igualmente protegido usava um secador de cabelo para tentar tornar as folhas mais limpas, junto com um produto desconhecido que lembrava muito silicone líquido. Um terceiro homem comandava a máquina e parecia que já estava para fazê-la parar. Tudo parecia estar sendo muito bem orquestrado e levava a crer que já tenha sido treinado antes muitas vezes.

Nenhum deles notou que eu entrara na sala. Muitos deles já receberam minhas advertências sobre meus temores. Agora vejo que perdia meu tempo, nunca seria ouvido. O êxtase deles com a conquista era orgásmico e me senti completamente sem forças para emitir qualquer protesto e ser demitido por ter testemunhado uma experiência rigorosamente restrita. Só me restou tentar ver as três folhas que haviam sido materializadas. Quase prostrei de joelhos de pavor a alívio ao mesmo tempo.

Estavam ali bem na minha frente as folhas do Capítulo III que antes só havia visto durante meu sonho: escritas com lápis sem ponta, quase de maneira displicente e todas com aquela matemática enigmática e oculta repleta de vontade própria e escondida.

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