O Hóspede

Eu nunca escondi de amigos que a filha de Rodrigo e Ângela me causava arrepios. Ela em nada se parecia com nenhum deles e, das vezes que os visitei, nunca vi uma demonstração de carinho - nem uma sequer - entre eles. Sem mencionar que sua aparência era sobretudo cínica. Cínica, dissimulada, quase demoníaca. Absolutamente apagada e sóbria para uma criança de 12 anos. E sempre que os encontrava, ela usava aquele mesmo vestidinho branco estampado que fazia me perguntar se os pais compravam roupas para a criança.

Tinha o cabelo crespo comprido até pouco abaixo dos ombros, fazendo sua cabeça parecer sobrenaturalmente pequena para a proporção do corpo. Era magérrima, tinha olhos grandes e parecia que não sabia andar direito. Sobretudo, era uma menina feia. Feia e sinistra.

Éramos amigos de tempos quando ela ainda não era nascida. Perdemos o contato e só voltamos a nos encontrar quando ela já tinha 10 anos. Foi a mãe que me apresentou, se chama Rebeca. A achei tão diferente que deduzi que era adotada, então o tabu em cima do assunto era enorme.

Logicamente que nunca comentei isso com os pais, só com amigos. Mas nenhum deles a conhecia, porque não eram íntimos dos dois. Frequentei a casa deles durante um tempo e posso afirmar: nunca - nunca a vi brincar uma única vez. Dava para vê-la sentada no quarto dos pais, sobre a cama, olhando-nos conversar. Eventualmente, passava por nós até a cozinha, pegava alguma coisa do pote de biscoitos e voltava para seu torpor.

Comecei a achá-la esquisita quando, durante uma conversa, senti que ela me observava do quarto dos pais, através da porta entreaberta. Quando devolvi o olhar, ela não vacilou e continuou a me encarar. Não desviou o olhar um só momento e não mudou sua expressão.

Mas não foi nessa vez que comecei a ficar com medo dela. Certa vez fomos a um casamento e achei estranho Rebeca não ter ido (em pensamentos eu me perguntava se ela iria ao casamento com aquele mesmo odioso vestidinho branco salpicado de bolinhas laranja), mas não comentei. Na festa, o casal ficou bem reservado, enquanto eu bebi demais. Então fui convidado para passar a noite na casa deles.

Quando chegamos não vi Rebeca. Achei que ela estava na casa de algum parente. Fiquei até aliviado. Rodrigo me ofereceu algumas roupas para dormir. Fiquei na sala. De tempos em tempos ela se iluminava, porque a casa ficava em uma curva de uma grande avenida e era fatalmente iluminada pelos veículos que passavam durante a noite.

Levei um tempão para dormir. Ficava olhando para a TV (que ainda era uma daquelas de tubo) com vontade de assistir ao Altas Horas. Pouco depois de a sala se iluminar anunciando mais um veículo cruzando a avenida, noto um reflexo no vidro da TV: Rebeca parada no meio da janela olhando para a TV, atrás de mim.

Me assustei e me virei. Fiquei muito assustado porque não vi nada. Porém, sempre que eu olhava para a TV o reflexo continuava no mesmo lugar! Comecei a rir sozinho e imaginei que tinha sido drogado na festa. Fiquei com medo de acordar todo mundo na casa, então com muito cuidado me levantei do sofá e me pus em pé. Olhava ora o reflexo da TV, ora o lugar onde ela devia estar.

Meus nervos ficaram à flor da pele quando percebo Rebeca sair de sua inércia e se aproximar do sofá: subindo pelo encosto e deitando onde eu estava deitado. Mas tudo pelo reflexo, não havia nada lá de fato!!!!

Tentei ir para o banheiro sem fazer barulho. Lavei o rosto e fui para a cozinha. Procurei se tinha café na cafeteira, mesmo que amanhecido. Achei quase metade dela cheia e engoli tudo sem açúcar e sem fazer cara feia. Fiquei pelo menos 30 minutos na cozinha andando de um lado para o outro pensando, como se fosse uma criança com medo de algum inseto grande que viu no quarto. Quando voltei, a primeira coisa que fiz foi olhar para o reflexo da TV: ela continuava lá e parecia dormir.

Então, com muito cuidado peguei um travesseiro que estava caído e levei para uma poltrona mais afastada. A coloquei de forma que eu pudesse ver a TV e fiquei lá espremido tentando dormir em vão. Porque o que eu queria mesmo era ficar observando se Rebeca iria ir embora.

Então, lá pelas 3 da manhã, vejo pelo reflexo ela se levantar e ir para o quarto dos pais.

Meu coração quase saltou pela boca quando vejo a porta abrindo para o nada passar!

Depois de uns 5 minutos me convencendo se o certo era ir até lá ver se eles estavam bem, fui para o quarto e vi algo que me fez fugir no meio da noite e nunca mais voltar, nem procurá-los.

Agora, sem precisar de reflexo nenhum, vi nitidamente Rebeca agachada sobre a cabeça de seu pai, defecando sobre ela e olhando prá mim, com aquela mesma expressão vazia.

A Nova Vendedora


O pessoal todo notou a nova moça que começou a atuar no departamento de vendas.

Era um espetáculo: linda, charmosa, sempre perfumada. Cabelo liso e bem claro até a cintura, mas que parecia ter sido ondulado artificialmente. Traços delicados e corpo frágil, mas com presença marcante: era uma daquelas loiras que ficam muito bem de óculos de sol! E daqueles bem grandes! Tinha aquele semblante de independência e poder que só te faz chegar perto se tiver uma alto-estima de deus grego!

Chegava todas as manhãs dirigindo um Azira, típico veículo grande que a sociedade inventou que é coisa de homem (e bem sucedido).

Trancava-se em seu escritório sem falar com ninguém. As pessoas comentavam que as coisas melhoraram muito quando ela chegou. As vendas decolaram! A moça era muito boa no que fazia. Sua presença era tão forte e tão marcante que até o "povo do cantinho" (turma reacionária preconceituosa que existe em toda empresa que se alimenta de ideias fascistas e que adora reclamar e falar mal dos outros) evitava o chavão machista de que a única forma de uma mulher jovem e bonita crescer em uma empresa era sair com o patrão.

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