Marionete


Vou tentar começar sendo direto: esta é mais uma daquelas histórias a cerca das páginas nefastas do Livro da Loucura.

E também é uma daquelas em que dou pistas de que o psiquiatra Dr Floriano está planejando construir uma máquina para materializar o livro. Recordo: o livro só existe nos sonhos das pessoas. Basta saber onde procurar. É mesmo impressionante... se você conseguir ter um sonho lúcido e seguir as instruções, fatalmente achará o mesmo livro com as mesmas descrições. Mas é um livro perigoso, assustador e, sobretudo, obtuso. Mas não pretendo escrever sobre ele novamente, até porque não "li" tanto como você pode imaginar (entre aspas, porque não se pode exatamente ler num sonho, só que o livro não apresenta exatamente o tipo de escrita que você está acostumado a ler). Por isso, só me atrevi a ler partes do Capítulo 1 e do Capítulo 3, para nunca mais ler. Já escrevi sobre eles e, quem tiver boa memória, me dará razão para ser assim.


Além de tudo, é um livro bem discrepante... parece maior depois que você o abre. Lembro-me que tinha cento e vinte páginas. Mas, aberto, parecia ter milhares... O que não é incomum nas dimensões oníricas...

Tentando ser mais direto ainda, Floriano deseja materializar o livro porque quer estudá-lo para aprender mais a cerca de seus mistérios. Não dispõe de tempo suficiente durante o sonho porque uma entidade o persegue por motivos pessoais. Não vou revelar aqui porque talvez escreva exclusivamente sobre o assunto no futuro, embora já tenha comentado sobre isso antes. E, além do mais, nos sonhos, por mais Pronofol que se possa tomar, não se dispõe de tempo nem de matéria apropriada para se realizar um estudo. A própria física do sonho - e, de novo, suas dimensões - impedem qualquer medida exata. E sempre é perigoso tomar qualquer grama de Pronofol que seja.

Vou narrar uma daquelas histórias que parecem desconexas, mas que ajudam a tornar as coisas mais claras. Como daquela recentemente noticiada nos jornais de uma menina de cinco anos que, após fraglar uma discussão dos pais, esquartejou a família toda e se suicidou. Mera obra de uma cabecinha perturbada por seguidos abusos e traumas?... não! Pelo menos não para aquelas pessoas mais atentas que se recordam dos pequenos detalhes que passam despercebidos pela maioria. Como do pequeno caderno de escola que muitos concluíram ter sido escrito por um adulto, tamanha complexidade dos temas abordados. Infelizmente as mentes convencionais dos investigadores ignoraram completamente o relato de viagens a mundos oníricos, seres gigantes e diferentes planos astrais, cuja matemática convencional não ousa pisar, travestidos de inocentes garratuchas.

Ah, a matemática!... também já comentei em outras ocasiões sobre o capítulo três do Livro da Loucura: todo escrito em matemática! Repleto de equações sem sentido, teoremas avançadíssimos que, de tão incongruentes, colocam a prova se a realidade existe! E todos meticulosamente comprovados por equações ainda mais absurdas. Tudo feito à lápis sem ponta, sem qualquer apresentação, ou comentário além dos números. Como se alguém tivesse encontrado o livro com páginas em branco e se pusesse a preenchê-las com esses cálculos.

Interessam muito a Floriano esses cálculos... na verdade, deixei transparecer mais de uma vez, que esses números vêm aparecendo aqui e ali, sem explicação. Como nos rabiscos que surgiram nos postes da Rua Ezequiel Freire e que foram removidos pela Prefeitura. Um recado a você leitor, caso tenha obtido algumas dessas sentenças e pretenda aplicá-la em alguma coisa, mas não tenha entendido minhas advertências, espalhadas nesses contos: NÃO O FAÇA! NINGUÉM SABE PARA O QUE SERVEM ESSAS CONTAS! ELAS DESMONTAM A REALIDADE ONDE QUER QUE SÃO USADAS!!

No entanto, existe um pequeno grupo de professores de Física, Matemática e Estudos Avançados da Alma da Universidade do Sobral que tenta, a todo o custo, evitar que o livro seja materializado. Descobriu-se a pouco a tentativa de Floriano de construir uma máquina feita unicamente de pêndulos para esse propósito. Cuja construção em tamanho muito menor foi responsável pela “Aurora Boreal“ feita de sangue, nos céus noturnos de Sobral, em 2011. O projeto da máquina de pêndulos foi criado a partir desse mesmo capítulo três do livro. Mas, no livro, uma parte da página que abrigava um pedaço menor, mas conclusivo da máquina, está deteriorado pela ação do tempo. Então, imagino que Floriano tem feito substituições. Talvez tenha alguma explicação no fenômeno que mencionei, além da proporção diminuta da máquina.

Tanto esse intrépido grupo, como Floriano, sabem que acontecimentos como o da garotinha estão ficando cada vez mais frequentes. Alguns estudiosos concordam que a sobrecarga de informação, aliada ao aumento significativo da expectativa de vida, tem contribuído para o surgimento de indivíduos com processo de pensamento diferenciado. Mas isso só explica parte das ocorrências e ainda se limita a parte na classe média. Porque os verdadeiros prodígios se encontram em outra camada da sociedade...

Engana-se quem associa o “privilégio“ dessa sabedoria aos muito dotados, aos catedráticos e aos donos das melhores cadeiras das Universidades. São os mendigos e os insanos os mais expostos a essa realidade expandida. São eles que abdicam da verdade e do concreto aceitando de braços abertos a esquizofrenia e a demência. Demência que permite aceitar absurdices e inconsistências que parecem incoerentes aos olhos da maioria das pessoas do senso comum.

E é com essa introdução que voltamos nosso olhar a Jurandir, morador das ruas do Sobral. Antigo boêmio e apreciador de todo tipo de imundice que desafia o homem e seus bons costumes. Ele começou sua quarta quarta-feira sem saber bem que dia do mês que era.

Foi durante meses que Floriano envenenava a mente do indigente com insinuações subliminares sobre como encontrar o livro, sobre como obter alguma fórmula que lhe interessasse e sobre como realizar um teste, usando-o como cobaia.

Jurandir passava cada vez mais tempo sonhando que acordado. Em seus sonhos, visitava campos e pradarias com gramado cor de abóbora, de beleza indescritível. Conhecia animais exóticos e visitava catedrais incríveis e abandonadas, de tamanhos titânicos. Era numas dessas catedrais que Floriano compartilhava do sonho, surgindo como uma espécie de arauto.

Nessas aparições Floriano nunca falava, só gesticulava e mostrava imagens. Não parecia mais o psiquiatra que clinicava na Av Angélica e passava o dia a bocejar paciente após paciente. Parecia mais um santo. Usava um manto dourado cheio de ornamentos, propositalmente elaborados para impressionar o pobre diabo. Mas suas aparições nunca acompanhavam Jurandir até a pradaria onde se localiza o Livro da Loucura. Pois, pelo pouco que se sabe, estar presente dele é uma tarefa estritamente confidencial. Esse conhecimento comum existe porque alguns capítulos se moldam ao leitor, embora o conteúdo seja tendencialmente o mesmo. Além é claro do caminho que conduz até ele necessitar ser feito sozinho (também já escrevi sobre isso antes).

Jurandir ficou semanas assim, aprendendo feitiços, anotando fórmulas matemáticas do livro (que raríssimamente chegavam a ver a realidade, pelos motivos que descrevi) e permanecendo pouquíssimo tempo acordado. Comia muito mal, tinha emagrecido e, mesmo que os médicos digam o contrário, havia encolhido. Exalava um forte cheiro de Pronofol, misturado a seu costumeiro odor de falta de banho. Amanheceu o dia pior do que o de costume. Estava com uma fome de exército mas não tinha nenhum trocado.

Teve ideia de roubar o mercado. Entrou sem carregar nenhuma arma séria, além de seu linguajar de malandro e um copo de vidro mal quebrado. De longe, Floriano assistia. Nunca haviam se visto cara-a-cara. Estava usando o desgraçado como cobaia de um experimento que estava testando.

Até a fome, tudo, havia sido estimulado pelo psiquiatra. Sem saber, Jurandir, era manipulado por cada gesto incauto de Floriano. Sentia sede quando ele mandava, sentia coceira quando estalava um dedo, obedecia sem saber às ações disparadas pelo psiquiatra que as desferia do modo mais discreto possível. Ele fazia uso de técnicas ocultas, usando a Teoria do Caos, mas controlando sua reação em cadeia de forma absolutamente diabólica. Se quisesse que Jurandir virasse à esquerda, mobilizava uma corrente de ar dissimulada que disparava a cadeia de eventos que, com total certeza, faria o idiota agir do jeito que queria. - o crime perfeito.

E, quando menos esperava, já estava dentro do mercado. Estava com a boca com gosto esquisito. Terminava de mastigar carne crua e de comer biscoito de chocolate sem recheio. Não se lembrava de como foi parar ali. Mantinha uma mulher gorda como refém com uma gravata e o copo quebrado ameaçando lhe cortar a garganta. Não sabia por que, mas estava morrendo de raiva. E estavam a olhar a rua, da entrada do mercado. Estava cercado de policiais. Havia uns jornalistas de programa sensacionalista da tarde tentando furar o cordão de isolamento e, ao lado deles, o desconhecido Floriano o manipulava a distância e registrava o resultado do experimento em um gravador, se passando por um deles.

Alguém falava com ele com megafone. Não dava a mínima para o que falavam, mas sentiu-se poderoso. Lembrou-se do que aprendia nos sonhos e quis reagir. Largou o copo que se estilhaçou no chão, fazendo os policiais pensarem que iria se entregar. Pareceram mais calmos no mesmo momento.

Então, com a mão desocupava (a outra continuava a segurar a pobre vítima pelo pescoço), passou a fazer desenhos no ar com a mão. Desenhou algo que se parecia a rosa dos ventos. Queria com isso puxar as armas das mãos dos policiais para a sua.

Em vez disso, se assustou com a expressão do cordão de isolamento e sentiu o gosto de ferro preencher ainda mais sua boca com as balas que foram disparadas. Ainda, com o pouco do sopro de vida que lhe sobrou, olhou sem entender para a vítima e guardou bem a última sensação que via em vida: espanto. Porque o rosto da pobre mulher que estava presa em sua gravada havia sumido de sua face, deixando uma grande área de pele vazia, como se fosse de defeito de nascença.

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