O Livro da Loucura


Logo de cara, sentencio: o Livro da Loucura não existe.

É quase como desses livros abomináveis que foram inventados pela literatura de ficção, tais como o Necronomicon de H. P. Lovecraft e seus Manuscritos Pnacóticos: são descritos com tantos detalhes que muita gente acredita que realmente existem.

No entanto, afirmo: folheei suas páginas...

O único exemplar do Livro da Loucura tem o tamanho de uma enciclopédia. Tem a capa dura, vermelha e amassada, sem nada escrita. É emendada por uma fita adesiva bem no meio, de cima-a-baixo lugar onde, supostamente, Fernando Pessoa teria a quebrado quando arremessara contra a parede. (Obviamente, remendada por outra pessoa, em uma época bem mais recente).

Tem cerca de cento e vinte páginas. Não sendo, portanto, um livro grande. É escrito em uma tipografia alienígena, não usando os símbolos conhecidos do alfabeto, da língua japonesa, chinesa, ou de qualquer outra presente nos mais tradicionais dicionários e tradutores. Em vez disso, a descrição mais a próxima é de que sua "escrita" se baseia na língua falada pelas criaturas do éter. A que só os vultos e outros seres com habilidade de comunicação que habitam seu abismo mais profundo pronunciam.

Seu conteúdo é literalmente subjetivo: embora conceitualmente o mesmo, as palavras se moldam para parecer ser destinadas ao leitor. Razão pela qual ser impossível, ou pelo menos desaconselhável, ser lido por mais de uma pessoa ao mesmo tempo.


Tem esse nome porque facilmente pode enlouquecer o leitor. Das poucas pessoas que tiveram acesso a ele, algumas manifestaram doenças mentais ou outros distúrbios. Tais como acessos de insônia, paranoia, esquizofrenia, personalidade-múltipla, agorafobia, ou simplesmente nunca mais acordaram.

É composto de quatro capítulos: o primeiro trata da infância até a vida adulta do leitor. O leitor tem a impressão de que é ele mesmo que escreveu a história. Existem até notas de rodapé sobre intimidades que só ele conhece, escrito usando um jeito de expressar que lhe é característico. Algumas pessoas chegam até a formular lembranças falsas de quando escreveram as páginas. Poucas pessoas conseguem passar por esse capítulo sem chorar, pois ele sempre acaba na morte de seus pais.

O Segundo Capítulo relaciona, de forma confusa e desconexa, arrependimentos e segredos cruéis e inconfessáveis. São frases diretas obtidas de pensamentos que elucidam mistérios, ou situações que tiveram um desfecho infeliz devido a algum tipo de omissão de algum inocente. Ou mesmo, regozijos incautos de alguém pela desgraça alheia.

O Terceiro Capítulo é composto de números e equações matemáticas ocultas. Está repleta de grosserias à física e à realidade, mas todas são coesas e brilhantemente formuladas. Aparecem numerais arábicos tradicionais, mas também símbolos estranhos que não fazem parte da matemática conhecida. É o único capítulo que não muda de acordo com quem lê. Está todo escrito à mão e com alguma coisa bem barata. Como um lápis preto mal apontado, mas que resiste ao tempo. Já vi réplicas dessas páginas espalhadas displicentemente por aí. Sendo, a mais famosa delas, conhecida como os "rabiscos da Rua Dr. Gabriel Pizza", que já foram removidas pela prefeitura de suas paredes.

O Quarto Capítulo é provavelmente o mais misterioso de todos. É composto por fotografias do leitor. São diversas e nenhuma delas de fato existiu. Nenhuma delas tem algum tipo de contexto. Parecem tiradas por algum espião. As fotos raramente têm algum tipo de ambientação. Em todas, o leitor está em algum ambiente escuro e é a única coisa iluminada pelo flash. Em nenhuma delas ele faz pose, ou parece perceber a presença da câmera, mas a maioria das fotos foca o leitor da linha da cintura prá cima. O enquadramento é quase sempre torto. Dá para perceber que quem tirou as fotos tinha intenções bem furtivas. Chama a atenção à última página que, como as demais, deveria ter também duas fotos, mas tem apenas uma. Compartilha a composição um vulto em especial ocupando uma parte do plano de fundo, mas sem parecer muito perceptível. Mas, o que verdadeiramente salta aos olhos, é o espaço vazio que deveria ser ocupado pela última foto. Foto essa que aparenta ter sido retirada. Assusta o espaço vazio porque transmite a impressão de que a foto fora removida por algum interesse especial de alguém, ou de alguma coisa, no leitor. Infelizmente, a composição delas não dá nenhuma pista do que poderia haver na ausente.

O Livro da Loucura só pode ser lido durante o sono R.E.M., quando se está sonhando. Razão pela qual os anagramas impressos podem ser lidos. Esse é o motivo porque muitos estudiosos concordam ser ela a representação escrita do idioma usado no éter. Pois esse tipo de comunicação também requer muito mais do que a fala para ser usada - e um nível de lucidez obtido dificilmente sem a ajuda de altas doses de Pronofol. O mesmo ocorre com a escrita: não se pode ler durante sonhos. Então a leitura deve ocorrer por outros meios, além daqueles símbolos estranhos. 

É necessário dominar as técnicas do Sonho Lúcido para chegar até ele, pois é muito difícil chegar por vontade própria a sua localização (bem como a de qualquer coisa nos sonhos).

Primeiro, o leitor deve voltar a sua infância. Todos os sonhos da infância trazem, em alguma parte dele, um corredor comprido próxima a algum lugar onde ele tenha passado por alguma humilhação ou tipo de violência. Esse lugar fica quase sempre na escola.

Depois de entrar no corredor, o leitor deve estar atendo a virar à esquerda na primeira saída que encontrar. Se continuar até o final ele será levado a de volta ao local de onde entrou, pois o corredor é uma máquina onírica de realidade inconsistente.

Por outro lado, se virar no caminho certo, o leitor será levado a uma bela campina com uma sequoia em seu centro e uma mesinha à frente. Na mesinha, está o livro aberto sempre na página 63 do Capítulo 1 que narra quando o leitor chegou à campina em busca do livro.

Como podem ver, não é tão complicado desde que se saiba como procurar. É necessário, no entanto, ter controle do sonho para dar os passos certos e não cair na máquina de inconsistência.

É necessário colocar aos curiosos que não existem prêmios em ler suas páginas. Convido apenas aos estudiosos a tarefa de decifrar sua natureza e obter algumas respostas a respeito do propósito do livro. Os que querem fazer de sua busca uma mera aventura devem desistir.

Relembro: não existem prêmios para quem lê suas páginas.

Doutor Floriano Lima Andrade
Aos cuidados da Irmandade Paulistana

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