Daqui a dez anos...
Uma das coisas que me lembro de daqui a dez
anos, foi o grande alívio com que a sociedade recebeu a resposta ao problema da
falta de espaço nas ruas, hoje conhecido como "trânsito". Foi quando
a novata montadora "Suzano" anunciou o primeiro veículo a ser
produzido que era maior - bem maior - por dentro do que por fora. Usando uma técnica
que chamou de "Espaço Negativo". É conhecida como sendo o primeiro
uso prático de um conceito obscuro da matemática chamado de "equação do
zero". Logo, a técnica começou a ser usada nas fábricas, nos prédios e até
mesmo nas casas; resultando em ruas muito mais largas, ocupadas por veículos
muito mais curtos e estreitos.
Mas não foi só isso que apareceu daqui a
dez anos! Houve também a criação do "Estado da Platina", um novo país
que nasceu a oeste da Argentina; a descoberta de pelo menos dezesseis novos
elementos químicos na natureza que passaram a fazer parte da tabela periódica
dos elementos; a definição da ONU como Governo do Mundo reconhecido por todos e
com poderes de exército e polícia e a privatização de todos os serviços
públicos em todos os países. Daqui a dez anos, todos falam o Português falado
em Angola.
Daqui a dez anos, todo mundo é bonito e
cheira bem o tempo todo. Ninguém mais envelhece. Isso, se por um lado torna a
vida mais fácil, por outro torna os velórios ainda mais tristes. Você pode ter
vivido cem anos, mas sempre parecerá que viveu só vinte e dois e morreu na flor
da idade.
Porém, nem tudo é perfeito daqui a dez
anos... muitos desses avanços, principalmente os feitos para retardar o
processo de envelhecimento, resultam em um efeito colateral: o exalar de uma
substância misteriosa que muita gente gosta de chamar de "caldo".
No começo, achou-se tratar do que os
espíritas costumam chamar de "ectoplasma". Mas, mais tarde,
percebeu-se se aproximar muito mais do que normalmente se associa a
"encosto". Embora num contexto bem diferente.
Trata-se de um líquido viscoso com a metade
da densidade do mel puro e que forma nata quando fica em repouso. Tem cor
esverdeada e cheiro de terra molhada. É exalado da cabeça, através da raiz dos
cabelos, quando se dorme.
É a manifestação física de energias ditas
"negativas" que não são emanadas pela própria pessoa, mas provocadas
por outras. - Inveja, na maioria das vezes.
Algumas pessoas costumam acordar com o
travesseiro completamente encharcado - as mais populares, ricas, políticas e
famosas, principalmente. Razão pela qual os travesseiros usados daqui a dez
anos serem muito mais parecidos com esponjas grandes do que com travesseiros
propriamente ditos.
A vaidade de daqui a dez anos é tamanha que
algumas meninas, quando viram moças, costumam disputar para ver quem é mais
invejada medindo quanto caldo foi excretado de suas cabeças à noite. Alguns
bebês também conseguem expelir o material, mas com ocorrências bem mais raras e
em quantidades bem pequenas. Fator suficiente para tornar algumas mães tomadas
de orgulho, em vez de preocupadas.
O caldo tem propriedades metafísicas. E,
como daqui a dez anos é uma época extremamente superficial, pouca gente sabe
disso. Na maioria das vezes, as pessoas só atribuem seu exalar mesmo à inveja e
ciúmes que os outros ressentem delas, servindo como termômetro social de
popularidade e "sexy apeal". Portanto, não é de se espantar que
ninguém associe os rangeres de madeira, batidas de portas e vultos estranhos
que se formam nos espelhos ao líquido que emana de seus crânios.
O caso mais estranho que correu daqui a dez
anos envolvendo o excesso de caldo expelido foi em Ruanda. Aconteceu com uma
jovem atleta de tênis, então inaugurando sua primeira linha de cosméticos, como
é comum acontecer com celebridades que ganham muito dinheiro.
Ao acordar em seu apartamento, extremamente
espaçoso por dentro - até mesmo para os padrões de daqui a dez anos, se deparou
com uma bagunça estranhíssima na casa. Haviam objetos atirados por toda a
parte. Alguns pareciam ter sido acomodados por alguém muito alto em lugares
onde ela não podia alcançar.
O cenário sinistro se completava com os
espelhos: todos virados de costas contra a parede. Mas estes, ao contrário, não
eram colocados ao acaso estando muito bem arranjados. Até com certo esmero.
Desnecessário citar as enormes quantias de
caldo escorridas pelo travesseiro até formarem pequenas poças no chão. A garota
chegou a procurar médicos, mas começou a tomar Pronofol por conta. As secreções
diminuíram, mas não cessaram... Como a maioria faria, não associou o misterioso
caos com que seu apartamento amanhecia com fenômenos metafísicos devido à
quantia exagerada de caldo que exalava de sua cabeça. Julgava estar
sonâmbula.
Depois de dois meses, deixou abruptamente o
Pronofol. Foi mais ou menos nessa época que reatou o namoro com um antigo
parceiro. Foi ele que fraglou uma das mais espantosas manifestações metafísicas
provocadas por essa estranha substância que se tem notícia.
Voltava do banheiro para a cama no meio da
madrugada, quando avistou sobre a cabeça entumecida da moça uma figura em pé
vestida com camisola de hospital. Era um homem muito alto e magro de uns
quarenta anos. Tinha o cabelo desarrumado e a barba por fazer. Os olhos eram
plenos de um negro borrado e aparentemente maligno. Chegavam a se confundir com
a auréola da bochecha que também parecia muito escurecida, exceto na
protuberância das maças do rosto que denunciavam algum volume e dava para ver a
barba descuidada. Tinha ataduras nos pulsos e no pescoço e dava para ver que a
fita que as colava tinha perdido quase toda a goma.
O rapaz ficou sem voz. Pensou mais em sair
correndo do que em socorrer a moça que ainda dormia. Ela roncava muito alto,
mas de forma muito estranha. Dava para notar pelo ritmo quase melódico da
respiração que estava sob algum tipo de influência levemente hipnótica.
O homem parecia não ter peso. Estava com os
pés em volta da cabeça da moça, sobre o travesseiro. Então, se virou de costas
para a parede, molhou dois dedos de sangue que tirou de uma de suas feridas mal
fechadas do pescoço e escreveu alguma coisa em letra trêmula e de fôrma, mas de
trás-para-frente.
Mesmo tomado de pavor e sem saber como
reagir, o rapaz entendeu muito bem do que se tratava a aparição. Embora sua
inteligência limítrofe de daqui a dez anos (que meramente pincelava alguns
assuntos em voga sem se aprofundar em nenhum) não permitisse decifrar que o catalizador
daquela inconsistência existencial fosse o tal caldo em que a garota estava
metida (e muito menos que o tratamento inadequado do Profonol e sua suspensão
sem controle tivessem estimulado o aumento da secreção), era muito claro que
aquele homem inconsistente já pisara sobre a terra em forma física e que
devotava muita afeição à moça, mas também guardava muito remorso. Também era
muito clara a infelicidade que o colocava naquela posição espectral porque, na
parede, escrita com sangue, estava a palavra "CIÚMES".
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