Muito Além do Livro da Loucura


Dr. Floriano,

Fiquei curiosíssimo com sua descrição a cerca do Livro da Loucura e do caminho para chegar nele. Parabenizo-o pela descoberta.

No entanto, o que me motiva a escrever é a "Máquina Onírica de Realidade Inconsistente" que levaria até o livro, se fosse cuidadosamente burlada. Desde que se dobrada a certa esquina.

Esse estranho artefato que povoa o mundo dos sonhos precisa ser muito bem estudado. Segui suas orientações em busca do livro, mas me perdi na inconsistência, tendo revivido a mesma passagem inúmeras vezes até despertar. Tentei novamente na noite seguinte e, desta vez, tomei uma dose do Pronofol. Dessa vez, quando cheguei à máquina de inconsistência, consegui manter a lucidez e avançar. Porém, descobri que a passagem ao qual você se refere não é a única! Mas a primeira de uma centena! Basta manter a lucidez suficiente no sonho para passar adiante dessa passagem para ter acesso a outras.

O problema é controlar essa lucidez a ponto de não se deixar levar e atravessar o corredor todo, entrando na máquina e voltando a seu início. Nem ao ponto de se modificar o sonho por indução de pensamento e, assim, quebrar a estrutura dele e ser conduzido ao despertar. Por isso, acho difícil a empreitada sem tomar doses perigosas de Pronofol.

Mas o ponto não é esse. Já vimos centenas de outras máquinas de inconsistência. Não são nenhuma novidade: você entra em uma estrutura familiar - muitas vezes um corredor ou uma ponte e, em algumas vezes, até mesmo uma porta comum - e se vê repetindo inúmeras vezes o mesmo momento, sem perceber, até o despertar. Porém, essa estrutura em especial que o senhor descobriu não é regular e apresenta bifurcações. Quantas são, para o que servem e até onde elas nos levam é o mistério.


Eu suspeito de que existem versões do Livro da Loucura que o complementam espalhadas nessas passagens. Acho que essas versões apresentam partes faltantes do livro que, juntas, podem ajudar a entendê-lo melhor. Mas esse não é o único mistério a se decifrar. Suspeito de que existem muitos outros de que nem suspeitamos que existam! Então, meu velho, a busca que se abre a nossa frente não é de respostas, mas de novas e inquietantes perguntas!

Antes de incentivar novas explorações, faço um alerta ao senhor e também a toda a comunidade científica: não explorem as passagens sem ter certeza de que vão acordar. E estendo minha advertência também à descoberta pelo senhor: não explore para além da campina onde se encontra o livro. É muito perigoso.

Algumas dessas passagens estão conectadas ao Éter. Comecei uma exploração tímida à primeira passagem em seguida da sua que quase me deixou preso para sempre.

Em minha visão, fui parar em uma versão grotesca da Ladeira do Porto Geral. Estava escura e vazia. Tinha relógios de ponteiro espalhados pelos postes e fachadas das lojas. Todos estavam parados no mesmo horário: 2h da manhã. Eram relógios de todas as formas e tamanhos e todos estavam parados nessa mesma hora.

Não importava para onde eu virasse, os relógios me acompanhavam, estavam sempre virados para mim. Pensei até estar diante das famosas estruturas descritas por S. e V.. Por isso, procurei não me demorar muito e tomei cuidado redobrado para garantir que despertasse. Procurei não me afastar muito da saída da passagem para manter bem firme meu vínculo com a máquina e não esquecer que estava sonhando. Mas, como o senhor poderá ver, não me contive por muito tempo...

Numa daquelas vielas que partem da ladeira, vi aquelas bestas que, normalmente, habitam os primeiros níveis do éter: essas eram meninas nuas grotescas e mutiladas e estavam copulando com animais estranhos. Formavam um bolo onde não dava para distinguir bem onde começava um e terminava o outro. Eram muitas cabeças, muitas pernas e muitos sexos fundidos, formando uma única estrutura orgânica e dinâmica, sempre se contorcendo. Emitiam guinchos horríveis como os de porcos sendo estripados e expeliam toda forma de odor profano e pustulento à volta. Devem ter sido atraídas pelo cheiro do Pronofol. Essas bestas perseguem a droga como se fosse pólen para as abelhas. Felizmente, eu estava lúcido o bastante para ter idealizado que tinha trazido pó de café e talco antes de entrar na máquina. Sem hesitar, borrei um pouco no pescoço e também nas têmporas para encobrir o cheiro.

Ainda resta mencionar que achei ter avistado a viúva do éter. Não procurei investigar se era ela mesma por motivos óbvios. Usava os mesmos trapos que parecem mortalhas e carregava aquele mesmo semblante que costuma assumir quando pretende dissimular indiferença: com os braços cruzando os peitos, as mãos tocando os ombros e o rosto abaixado (felizmente mantendo aqueles olhos horrorosos longe da vista). Não sei se me viu porque aquilo adora dissimular e o faz muito bem. Sei que o senhor não gosta que comentemos dela por motivos ainda mais óbvios, mas eu tinha que fazer essa observação, para o caso de o senhor decidir explorar a passagem por conta. A vi através do reflexo de uma poça de água e não procurei olhar para o objeto dele para confirmar se era ela mesma.

Mas meu maior perigo ocorreu na volta: vítima do excesso de lucidez provocada pela droga, esqueci que estava sonhando e comecei a aceitar todas aquelas bizarrices que presenciava como sendo "reais".

Tentava fazer o caminho de volta pelo metrô e não pela passagem da máquina de inconsistência. Tinha esquecido do meu propósito e, de repente, era como se eu voltasse do escritório para casa.

Quando desci a primeira escada, me deparei com um corredor feito com ladrilhos de azulejo e, no final dele, havia uma terra vasta e verde. Caminhei até essa terra e meu coração se encheu de uma alegria descomunal e artificial. Fui surpreendido por três lindas mulheres, com a pele mais macia e perfumada que jamais vira (agora, muito bem acordado, percebo que seus rostos eram projeções de mulheres reais que desejo platonicamente. Mas, naquele momento, era como se fossem estranhas. Acho que uma delas era uma atriz que atua em novelas da Globo, uma era uma atriz de cinema e a outra a filha de um conhecido).

Estariam nuas, exceto pelas joias e adornos luxuosos que usavam, tornando sua nudez oculta muito mais excitante... Eram como ninfas egípcias, com as curvas mais insinuantes e delicadas do mundo, mas cobertas por rubis, brincos, anéis e relógios caros. E olhavam para mim como se eu fosse o último homem da Terra...

Fui tomado de um desejo e uma ereção indescritíveis, só obtidas através de experiências oníricas com altas escalas de consciência. Estava para possuí-las, quando o sonho deu um revés que por pouco não me condenou à prisão de nunca mais acordar...

Vi-me começando a assinar uma grande folha de papel e a ter minha mão conduzida contra minha vontade por um homem sem-rosto. Havia centenas de nomes lá. Inclusive de antigos amigos e de gente muito famosa que, infelizmente, só me recordo durante os sonhos...

As jovens estavam dando risinhos e se acariciando deitadas numa grande alcova de seda que ficava em um quarto mal iluminado do qual não tenho a menor ideia de como fui parar. Estavam esperando que eu terminasse de assinar aquele papel, ordenado por aquele homem estranho e perturbador. Embora meu desejo por elas fosse muito alto, me assustava muito aquilo tudo e eu não queria assinar.

Só fui salvo por um detalhe daquela artimanha em tempo de não ter o corredor de ladrilhos de azulejo por onde vim inteiramente desintegrado e apagado de minha memória, me mantendo preso no sonho para sempre... Porque esse detalhe me fez perceber de que aquilo tudo não era real e que eu deveria voltar à máquina de inconsistência, de onde poderia acordar normalmente como todo mundo.

E só a partir daí tomei as rédeas do sonho novamente para dominar a fera que me obrigava a assinar sua lista misteriosa e voltar para casa...

Adornando o pulso da mão de uma das ninfas dos infernos que escorregava em meu peito com suas longas garras para me incentivar a assinar o rolo de papel oferecido pelo demônio sem rosto, havia um relógio de ponteiro de um desenho complicadíssimo e sofisticado, todo feito em diamantes. Escorreguei minha mão sobre ele no desejo febril de tocar sua pele macia, a fim de me convencer secretamente de que o "acordo" valia mesmo a pena. E constatei que ele também estava parado. E marcava 2 horas da manhã...

L. A.

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