A Dona da Foice


Afrânio achou uma pequena foice entre as coisas de sua finada senhora numa dessas viagens ao passado que fazia ao porão sempre que se sentia nostálgico e solitário.

Achou esquisito. Nunca tinha visto a esposa com aquilo. Era pequena e bastante semelhante àquela usada no símbolo do comunismo. Exceto que essa tinha cabo de madeira. Muito provavelmente, era usada para abrir clareiras no meio da mata e construir trilhas na relva.

Era bem leve e bem velha. Tinha uma palavra estranha desajeitada escrita no cabo. Parecia latim, mas não era (Afrânio já estudara o idioma na juventude e se lembrava o suficiente para saber que não era).

Começava a confabular sobre a procedência de o instrumento ser de um ladrão, quando ouviu um barulho vindo da cozinha. Apressou-se e foi surpreendido por algum estranho lavando seus pratos.

Pegou a mesma foice e se aproximou com cautela. Quando chegou, se assustou com o que viu.

- Olá, Afrânio! Eu estava esperando você subir e estava me entretendo com sua louça. Você não deve saber, mas não posso entrar no seu porão...



Falando um português muito bem estruturado e polido, estava parado o que poderia ser classificado como um “monstro“. Lembrava muito aquelas ilustrações estranhas e fantasiosas da época das Grandes Navegações que apareciam em alguns mapas, ou estampadas em guias médicos muito antigos, notáveis por seus erros de proporção. Era singularmente cinza. Tinha braços com dois pulsos cada e pernas com joelhos invertidos. A cabeça formava um mecanismo muito estranho com o pescoço que lhe conferia a habilidade de ficar sempre de perfil para o ouvinte, muito parecido às pinturas encontradas em pirâmides. Tinha o rosto estranhamente alongado e guardava algum aspecto lupino. Em lugar dos olhos, tinha duas bocas pequenas e cheias de dentes. Trajava um vestido branco sujo e duas espécies de bengalas coloridas presas às costas, como um daqueles apetrechos usados em algumas danças egípcias. O corpo era ligeiramente alto, com um peitoral muito forte e ombros largos. Tinha pelos ralos espalhados pela pele, mas tinha um cinza inexplicavelmente artificial predominando.

E aquilo lavava a louça de Afrânio...

- Não fique aí tão assustado, meu velho. Garanto-lhe que seu coração não vai parar de bater. Pelo menos não até eu terminar de dizer o que vim aqui lhe dizer.

Afrânio estava num estado de nervos que não podia bem ser descrito. Ele sabia que deveria estar enfartando ao ver aquela criatura inteligente (lhe chamando pelo nome), mas sentia sua alma a flor da pele. Era como se estivesse capacitada a suportar níveis de pavor muito superiores à de seres humanos comuns. Como Afrânio parecia assustado demais para falar, então a coisa prosseguiu:

- Eu sou o bicho-papão de todo ser vivente, sou o homem do saco dos muito doentes. Se ficar eu como, se correr eu pego! Sou o véu e sou a cortina que desce no último ato de tudo o que respira, ou faz fagocitose. Sou o que dá sentido a toda canção de amor. Sou a procura dos desesperados e desacreditados e o agouro dos muito felizes. Para mim não existem valentes! A mim não cabe julgar, só executar. Pois, aos meus olhos, não existem inocentes! Pois todo mundo é culpado de alguma coisa, é só procurar...

Afrânio se sentava tremendo na cadeira de vime que substituía o conjunto incompleto que formava a mesa da cozinha. O fez bem devagar, sem tirar os olhos do monstro, mas baixando a foice aos poucos. Quando pronunciou, tremendo sua mão idosa apontada para o monstro.

- Vo-você é o demônio?

A coisa achou graça da pergunta e, diante do fracasso, entregou a resposta:

- Não, Afrânio. Eu não sou o diabo. Sou a morte.

Afrânio teve o que se pode chamar de alivio. Não era exatamente o tipo de visita que acalmaria a maioria das pessoas. Mas era melhor que o diabo. Morria de medo do diabo! Em seguida começou a olhar para toda a matéria em volta e teve vontade de se despedir dos objetos, já que pensou que ia morrer.

A morte virou sua cabeça esquisita para Afrânio sem virar-se de frente. Continuava a lavar os pratos e a lhe dirigir a palavra ao mesmo tempo.

- Afrânio, essa foice que você segura me pertence. Ela foi surrupiada por Elisabete, sua finada esposa - e que o cão que vigia a entrada do Inferno a proteja pela sua ousadia! Ela foi furtada da maneira mais jocosa possível e eu não posso permitir que isso fique assim...

De repente, Afrânio e a morte se viram na sala. Não saberia explicar como foram parar lá. Ele estava sentado na poltrona e a morte ficava em pé ao lado da Semp-Toshiba (cuja garantia já espirara há muitas Copas do Mundo atrás...).

A presença da morte embaralhava a realidade. Para começar, o reflexo da TV de tubo que mencionei há pouco não refletia o que tinha a frente, mas o que tinha a volta. Mesmo a morte estando a seu lado você podia vê-la no reflexo, como se o reflexo fosse o resultado de alguma filmagem. Mas o fenômeno mais estranho veio de um símbolo aparentemente banal: das corujas. Havia corujas em toda a parte, principalmente nos quadros. Todos os quadros, até mesmo os menores, foram trocados por imagens de corujas. E sempre com o semblante muito desolador. Acima da porta da cozinha apareceu um busto de uma enorme e, à volta, um tenebroso negro turvo e opressor se espalhava pela sala.

E Afrânio deduziu que o humor da morte tinha piorado.

- Afrânio, sua finada traiu a nós dois. Ela andou mexendo com bruxaria e alterando a ordem natural das coisas. Ela teve acesso ao conhecimento daqueles fedelhos que se intitulam “A Irmandade Paulistana“. Eles brincam de entrar e sair do éter sem saber bem com o que estão lidando. Não deveria estar ao alcance dos mortais esse tipo de conhecimento. Você concorda comigo, Afrânio?

Afrânio ainda não aceitava bem a ideia de conversar com a morte como se fossem amigos. Então não deu a importância que devia ao fato de receber a notícia da mulher ter mexido com magia negra. Não sabia direito o que responder. Sentia-se constrangido em olhar para aquela forma estranha. Sabia pouco sobre a morte. Não sabia se podia ler sua mente. Não sabia se ela sabia de tudo. Então ficou com muito medo quando uma ideia fixa passou a permear sua mente: a do fato do que dizem as Escrituras: que Jesus a vencera.

Ficou com muita vontade de fazer perguntas sobre isso. Tinha vontade de perguntar como era Ele, como se sucedeu o fato, essas coisas. Mas era uma vontade reprimida. Dessas que normalmente alguém lhe sugere para não pensar em alguma coisa e você não consegue tirá-la da cabeça. Tinha muito medo de que a morte lesse sua mente e se ofendesse com sua curiosidade a cerca de sua única e ilustre derrota. Não queria confrontá-la pois, diante da morte, morrer não deve ser a pior coisa que pode lhe acontecer...

- Con-cordo..
- Ótimo!! Então você também há de concordar comigo que preciso desfazer a cagada da sua finada esposa (que as larvas do lugar mais escuro do Inferno tenham piedade de seu ventre pôdre!). Afrânio, era chegada a hora do seu sofrimento acabar! Seu tormento e sua angústia tinham finalmente chegado ao fim e você ia enfim descansar em paz! Era um presente que eu ia trazer para você!! E sabendo como você era o sujeito razoável que estou vendo que é, tinha preparado algo especial para que fosse indolor! Você ia morrer dormindo! Você gostaria disso, Afrânio? Gostaria de morrer dormindo?

A morte não deu tempo para Afrânio responder. Parecia que estava com raiva e era dada a fazer grandes e dramáticos discursos. Mas Afrânio ficou catatônico. Ficou chocado quando soube que já devia morrer. Então ficou aguardando a morte anunciar o fim de sua vida a qualquer momento. Mas ela não parava! Ficava dando longos discursos inflamados e não sentava de jeito nenhum. E todos os quadros que havia – e que estavam tomados por figuras de sinistras corujas - pareciam inquietos. Suas figuras ficavam distorcidas e ameaçadoras, acompanhando o humor da morte que, a essa altura, já passava do péssimo...

- Sua finada, meu velho, teve acesso a um certo livro que deveria ser evitado por tudo aquilo que pensa. O qual a maioria das pessoas chama de “O Livro da Loucura”. Foi quando você ficou doente daquela vez em que quase precisou de um transplante de coração...

Se você também brincasse de magia negra como sua amada esposinha, Afrânio, saberia que o primeiro capítulo do livro narra a vida do próprio leitor e termina sempre na morte dos pais. Não importa quem você seja ele sempre termina assim. E o sadismo desse livro vai além ao imitar até o jeito que você se expressa para pareceu que você mesmo escreveu...

Mas enfim,... sua finada, temendo a sua morte, obrigou a filha de vocês a ler o primeiro capítulo do livro... Quando soube como você iria bater as botas, meu amigo Afrânio, ela se antecipou e me surpreendeu na sua última hora, roubando a foice que eu mesma preparei para você... a canalha foi adiante e escondeu-a em seu porão e usou uma de suas mandingas para me afastar dele...

Não pense que é assim, Afrânio! Você não pode simplesmente adiar a hora. A hora é a hora! Os seus dias estão contados desde o dia em que vocês saem do útero de suas mães! Quando um médico ressuscita alguém com uma massagem cardíaca, ou quando um desenganado é salvo graças a uma técnica “milagrosa”, não é a morte que vocês enganam, mas a vocês mesmos! Tudo isso é um pequeno acidente que precisa acontecer. Vocês se acham muito espertos, a hora que ter que ser será, vocês não pode impedir ou prever isso!

A morte ficou um pouco quieta... parecia que tinha desabafado um fardo muito grande e agora estava se repondo. A cabeça de Afrânio estava a mil por hora. Sentia suas têmporas esquentar. Então reuniu forças para analisar a situação. E se lembrou com muito carinho da esposa e da filha que tentaram salvar sua vida de maneira tão peculiar. Olhou para um porta-retratos que tinha das duas com muita ternura para que aquela fosse a ultima coisa que se lembrasse antes da morte decidir lhe levar a vida. Mas achou a imagem de três corujas lutando para sair da fotografia ao mesmo tempo e se esbarrando em alguma barreira imaginária que a foto fazia com a realidade.

A casa toda estava em polvorosa com as imagens das corujas tentando sair dos quadros e fotos. Estava toda escura e com um ar viciado muito pesado. A morte parecia exausta e finalmente se sentava sobre o descanso dos braços de uma poltrona. Ficou quieta pelo menos uns dois minutos, quando pediu a Afrânio:

- Afrânio, me devolva a foice...

Afrânio obedeceu esperando ser alvejado por ela logo em seguida. A morte permanecia catatônica apoiada na poltrona, enquanto brincava com as unhas sujas no fio da foice. Parecia que refletia sobre alguma coisa e começou a sussurar alguma coisa incompreensível. Semelhante a quando as pessoas estão a fazer contas de cabeça. Afrânio, enquanto isso, permanecia mudo e angustiado.

Então a morte começou a aumentar o tom de voz enquanto repetia o mesmo jogral. Até que começou a repetir e aumentar o tom de voz: “NÃO ESTÁ CERTO - NÃO ESTÁ CERTO - NÃO ESTÁ CERTO!!!“

E a morte se levantou. E agora estava vibrante e inquisidora. Parecia mais alta e mais vistosa. E as figuras de coruja que ocupavam todas as gravuras da sala ficaram tão excitadas que muitas romperam as fotografias e as pinturas e agora inundavam a sala! E, solene, ela continuou:

- Que seja você a fazer o meu trabalho, cadela! Já que se achou digna de zombar do trabalho da morte, vamos ver se também é capaz de cumpri-lo!

O coração de Afrânio disparou quando ouviu dois fortes estrondos no assoalho, vindos do corredor que ligava a sala onde estavam aos quartos. Quando se virou, viu sua finada Elisabete voltando dos mortos.

Ela vinha de forma errante. Ora rastejado, ora se levantando, tropeçando e caindo novamente. Sua cabeça rodopiava no pescoço, no sentido oposto ao do resto do tronco, que também girava. Era um giro espasmático, virulento e explosivo. Dava trancos, parava, e recomeçava no sentido oposto. Então perdia o equilíbrio e tombava no chão. Para se levantar, rodopiava o tronco, que fazia com que seus cotovelos dessem grandes e horrendos socos no assoalho, ou em qualquer móvel que tivesse na frente. Mas nunca parava de avançar.

Elisabete trazia um garfo na mão. Quando passou do batente da porta, algumas corujas ficaram tão assustadas que voavam para o andar de cima do sobrado, atropelando as demais que transbordavam dos quadros.

E Elisabete cravou seu pequeno garfo no peito de Afrânio com uma força descomunal. Mas não foi assim que Afrânio morreu: enfartou muito antes, quando a viu subindo pelas suas pernas no sofá. Morto de susto. Morto pela própria vontade da morte que, ao contrário do que disse na cozinha mais cedo quando foi surpreendida, teve pena de Afrânio...

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