A Brincadeira do Ovo


A Brincadeira do Ovo
(Pela própria "coisa" que fazia essa brincadeira)

Cara!... Como eu gosto de lembrar da época em que eu pregava essa peça!... Eu nunca me esqueço do rosto daqueles pobres diabos, cheios de si, ostentando aqueles caríssimos óculos escuros pendurados naqueles narizes empinados, se achando mais espertos do que eu!!! E eu canto para todos os cantos do mundo, sem falsa modéstia: guardo cada um dos meus troféus com muito esmero! Cada um deles! Para quem quiser ver!

Eu usava a aparência de etnias marginalizadas pela sociedade onde quer que eu atuasse: fui cigano em Londres, latino em Nova York, palestino em Israel, nordestino em São Paulo! Eu enganava muito bem, só não conseguia disfarçar os cascos nos pés e os joelhos invertidos, então me fazia de aleijado, usando roupas simples, corcunda falsa e sotaque arrastado. Só mantinha uma higiene razoável, porque as pessoas tinham que querer chegar perto de mim.

Eu montava meu show no Centro, sempre em horários de grande movimento. As pessoas iam chegando sempre me olhando de cima para baixo, me julgando inferior. Aos poucos, a praça ficava tomada de gente! Vinham ver o meu truque do ovo e tentar me "desmascarar" mostrando para todo mundo que "não existe esse negócio de mágica!", afinal de contas, "se esse imigrante aleijado pode, eu também posso!"!!

O Homem sem Cabeça

Natália é uma menina de 16 anos que está acostumada a não ser levada a sério. Tem sérios problemas quanto a sua timidez e pouca habilidade em conquistar amigos. E, para piorar mais ainda, tem pouquíssima auto-confiança. Além de uma autoestima que não alcança sequer seu próprio tornozelo.

Natália estuda em um colégio para adolescentes ricos, próximo da Avenida Paulista. Está acima do peso, usa agasalhos esportivos com zíper, sempre fechados até o colarinho - faça frio ou calor - e sempre amarra mal seus cadarços. Frequentemente os esquece soltos, o que lhe provoca hilariantes topadas e tombos. Quando era mais nova, sua inocência bovina lhe atraía os olhares quando era flagrada conversando com formigas no recreio...

Bullyings sempre estavam no cardápio do dia e, devido às suas boas notas, seus pais nunca levavam suas queixas a sério. E, para falar a verdade, essas queixas não passaram de duas vezes das muitas em que ocorreram, tamanha a descrença que a menina creditava a seus próprios pais.

Outro fato importante sobre Natália, é que ela tem um irmãozinho de quatro anos, super protegido e, como toda criança super protegida, com tendência a crescer completamente sonsa...

Convite para uma Aula

Fui convidado a entrar em uma sala onde eram dadas aulas. Minha falta de percepção impediu uma rápida dedução de que sala era, mas percebi que o chão era coberto por tacos de madeira e que estava todo encerado. Havia uma grande falta de carteiras em algumas partes e, só então, percebi estar em minha sessão eleitoral (onde também outrora eu estudara o 1o ano do 2o grau).

Não era para sentir nenhuma nostalgia, já que eu nunca gostei do lugar (exceto pelos dias de eleições, onde algumas gatinhas eram obrigadas a servir como mesárias). Mas, embora as carteiras estivessem em parte afastadas e em parte não, não era dia de eleição. E, só aos poucos, fui notando que as pessoas que provavelmente seriam os mesários estavam vestindo jalecos de médico por cima de uma roupa casual.

Minha mente lenta demorou para assimilar, como era normal à circunstância. E foi bem lentamente também que notei que, embora as carteiras estivessem afastadas, pelo menos 4 estavam em fileiras com alunos sentados assistindo a uma aula. Não me lembro se eles também vestiam jalecos brancos, como os que davam aula (que a princípio pensei serem mesários). Foram eles que me receberam e me dirigiram a uma carteira um pouco afastada. Não era como se eu fosse um dos alunos, mas um consultor que devia ajudar.

Implicações do Diário de João Ribeiro - Paula

Ninguém sabe ao certo como a carta escrita por João Ribeiro foi publicada na Internet. Nos meses em que a polícia achou seu corpo e investigou o caso, somente um jornal de bairro local comentou a história e de forma bem superficial e sem alardes. A carta estava escondida e foi adicionada às provas e provavelmente foi arquivada e talvez destruída. Pois, como se sabe, pouco se deu atenção ao caso.

Este texto é o primeiro de um estudo que nasceu com o objetivo de estudar melhor os aspectos obscuros relatados na carta. O que é verdade e o que não é. Ele é uma iniciativa de alguns estudantes de Jornalismo da Faculdade Casper Líbero que tiveram acesso ao mesmo texto amplamente conhecido e que se intrigaram não apenas com seu aspecto peculiar, mas também com as implicações fora dele. Talvez ajudem a responder algumas perguntas.

Por exemplo, por que João Ribeiro nunca menciona o nome da ex-esposa? Se João teve acesso aos registros escolares do menino que teria aparecido em suas visões, por que seu nome também não é mencionado no final da carta, onde ele explicitamente cita o nome de muitos envolvidos? E por que João nunca fala no que ele e o amigo trabalham, e detalhes de sua origem, já que ele foi tão cuidadoso em relatar tantos detalhes sobre seus "algozes"?

Diário de João Ribeiro 12 / 12

E aqui me encontro: desolado e indefeso. Usei das únicas coisas que eu podia usar: as luzes, na esperança de tornar o terrível menos terrível. E espero impaciente a meu destino. Com um medo tão grande e voraz que supera a todas as piores notícias de doenças trágicas que se possa imaginar. Fiz um esforço para me lembrar o quanto eu tinha raiva do Dr. Floriano, do Rubens e da mãe do menino que, mesmo tomando a decisão mais estúpida e egoísta do mundo, ainda era encarada como vítima por esse bruxo demente e pelas pessoas que o cercam.

E é por isso que redijo estas palavras. Na esperança de que o Dr. Floriano Lima Andrade, dono do consultório Andrade Clínica Psiquiátrica, o senhor Rubens Estaneslau Alvarenga, e a dona Marjorie Alcântara de Oliveira sejam responsabilizadas pela minha morte, da e seu filho e também a de Gerson Fabiano da Conceição na prática de magia negra, como a de todas as demais pessoas que foram citadas direta, ou indiretamente nessas páginas.

Não aguento mais a aflição. A caneta pesa em minha mão e mal consigo manter o mesmo traço. Estou com muita dor de cabeça.

Diário de João Ribeiro 11 / 12

Eu não tinha dormido, não tinha almoçado e também não tinha tomado banho. Estava cheirando a suor, plantado num poste perto da LBV e morrendo de fome e dor de cabeça. Eram 16 horas e meu coração disparava esperando a visita da madrasta do garoto. Um turbilhão de coisas passavam pela minha cabeça. As idéias se embaralhavam, me impedindo de tomar qualquer decisão. Eu não sabia se diria a ela que tinha matado seu afilhado, ou se me restringia apenas nos pesadelos. Passadas 2 horas, noto parar um veículo grande, que não me lembro bem de que modelo que era. Dr. Floriano estava sentado no banco de trás e não deu para ver muito bem quem o conduzia. Ele abre a porta e me diz: "venha, entre meu filho". Sua expressão passava cansaço e impaciência.

Diário de João Ribeiro 10 / 12

Cecília me pediu para sentar. Sua língua estava sequiosa por tricotar a vida alheia. A situação começou a me divertir e tive um daqueles raros momentos em que se esquece dos problemas. A tonta foi até me passar um chá e esperei um pouco enquanto lutava contra a fantasia que pinicava no pescoço por causa da etiqueta mal-localizada.

Então, subitamente, parecia que quilômetros de palavras invadiam meus ouvidos! Uma enxurrada de besteiras que pouco que importavam saltavam de sua boca. Parece que a moça que eu atacara tinha fama de metida a grã-fina e, por isso, era alvo dos comentários preconceituosos de Cecília. Nem mesmo a calcinha pendurada no varal para secar foi perdoada. Até as trivialidades mais banais eram motivo para desabonar a moça. Quando meu sono atrasado ameaçava me atacar implacavelmente, um fato muito intrigante surgiu e mudou tudo...

Retrato aqui a parte útil do diálogo que tivemos, tal como ele ocorreu, tentando manter do jeito que a mulher me falava para minimizar ao máximo mudanças de interpretação de minha parte:

Diário de João Ribeiro 9 / 12

Eu tinha a ilusão de que com o raiar do dia, como sempre, as trevas desapareceriam e deixariam algum artefato estranho para me torturar para trás. Bom, as trevas se foram, só que os artefatos estranhos eram o corpo de Gerson e do monstrinho e aquela montureira de sangue que espirrara. Não restava dúvidas de que fora tudo muito real.

Assim que as coisas ficaram normais não parei para chorar a morte de meu amigo, mas tentei tirar algum proveito da fracassada noite e me pus a revistar o corpo do menino morto. De fato era um garoto normal e não trazia nada de sobrenatural. Achei uma carteira quase vazia com uma nota de 5 reais e uma carteirinha escolar. Triunfei com o achado e desta vez não tentei dormir: mandei prá dentro uma xícara de café gelado, há muito amanhecido na cafeteira, para ficar acordado. Tentei limpar como pude o quarto para não atrair a atenção dos vizinhos, enfiando os lençóis encharcados dentro de uma mala velha, e jogando tudo, mais os corpos e tudo que pudesse dar algum tipo de cheiro no quartinho de bagunça de maneira provisória até eu voltar de minhas investigações. Tentei disfarçar o cheiro de forma igualmente improvisada, usando pó-de-café e água sanitária. Saí em disparada até a escolinha para colher o máximo de informações.

Diário de João Ribeiro 8 / 12

O pirralho apareceu, mas de baixo da cama e não da caixa, como tínhamos imaginado. Engatinhava usando um pijaminha listrado, na sua forma de menino normal. Gerson quase surtou quando viu o garotinho surgindo de onde não havia nada. E confesso que também eu fiquei surpreso, porque não esperava que surgisse de lá. Como quem caçasse uma barata, me libertei de minha inércia e me adiantei o cercando, antes que ele fizesse algo assustador e nos paralisasse de medo.

Diário de João Ribeiro 7 / 12

Eu nem sabia que Gerson ainda tinha contato com Débora. Ela foi sua namoradinha durante nosso período de faculdade. Era uma japonesinha baixinha muito magra e bem tímida, sem muitos atrativos. Eram muito próximos, mas terminaram o relacionamento pouco depois que nos formamos, não sei muito bem o porquê.

Nem tive tempo de absorver tudo aquilo quando, pouco depois de Gerson, é o Dr. Floriano que me liga. Estava fulo da vida comigo. Me dissera que ele iria pagar as despesas do hospital se eu concordasse em nunca pisar em seu consultório de novo. Não tentei argumentar. O que eu podia dizer? Que estava desconfiado de um conluio entre ele e a viúva fantasmagórica? E depois, ele nem me deixava falar mesmo, com tanta raiva...

Decidi voltar para casa, mas Gerson estava muito abalado e não queria ficar sozinho. Então decidimos ir todos para minha casa assim que recebi alta. Eram quase 20h quando finalmente chegamos em casa e aquele dia frustrante parecia ter chegado ao fim.

Diário de João Ribeiro 6 / 12

Tentei me aproximar do quadro até tocá-lo. Mas a cada passo que eu dava ele parecia que recuava. Não era para eu encostar nele.

Então comecei a ouvir sons de carros. E de pessoas, e de progresso. E, aos poucos, a vida voltava lá fora. E nossos corações se encheram de alegria quando, de forma repentina (como se sempre estivéssemos ali) percebemos estar na cozinha de Gerson.

Gerson me encarou muito profundamente. Parecia que buscava alguma explicação lógica para aquilo tudo. Estava visivelmente aliviado, tanto que se pôs a gargalhar e acendeu um cigarro. Mas eu não. Eu sabia que aquilo não ia parar e ficaria cada vez pior.

Ouvi um som de talher despencando de alguma prateleira alta vinda do quarto. Me lembrei daquela placa que caíra na cama misteriosamente na outra noite. Corri para o quarto e achei aquela faca horrorosa caída na cama. Gerson demorou um século para vir atrás de mim. Quando viu a faca começou a bater no batente das portas e a gritar palavrões às paredes, transtornado. Mais tarde, derrubou um copo no chão tamanho era seu estado de nervos.

Diário de João Ribeiro 5 / 12

A rua emudeceu novamente e o vento parou de soprar. A porta a minha frente abriu e bateu muito rápido, mas não senti nenhum vento. Naquele momento, percebi que já não estava mais sozinho. Minha boca ficou seca. Comecei a entrar em pânico e sentei na cama para ver novamente aquele pirralho dos infernos sentado no carpete! Só que agora não parecia tão aterrador: estava com uniforme de escolinha de jardim-de-infância. Ao lado, jazia uma lancheirinha vermelha.

Ele parecia bem vivo e rosado dessa vez. Não tinha mais aqueles olhos grandes e vazados e percebi pela primeira vez se tratar de um japonês. Estava sorridente e brincava com massa de modelar. Quando notou que eu o via, deu um sorriso bonito e continuou brincando. Até que abriu a lancheira e tirou um enorme alicate que tinha as pontas com aparência de tesoura, como aquelas ferramentas de eletricista.

Diário de João Ribeiro 4 / 12

Meu amigo deve ter se assustado quando abriu a porta do meu quarto.

Eu estava catatônico. Meu colchão estava todo mijado e levei um tempo para dizer alguma frase que fizesse sentido. Passado algum tempo percebi que tinha mais gente no quarto e que me deram algo para beber. Eram os vizinhos. Estavam muito preocupados. E, principalmente, assustados com o fato de eu ter uma faca tão grande nas mãos naquele estado.

Dormi um pouco. Não queria, mas precisava. Tinha muito medo de fechar os olhos. Mas descobri que tinham me dado calmante. Quando todos foram embora começou a parte realmente difícil: explicar o que tinha acontecido.

Demorei mais do que deveria para começar a contar tudo. Gerson, ainda atordoado do choque pelo falecimento de sua amiga e minha ex-mulher, foi muito compreensivo comigo e ouviu tudo sem me interromper. Não tentei dissuadi-lo a não me achar louco, porque nem eu tinha essa certeza. As únicas provas de que dispunha era o corte que fizera com a farpa da placa no ônibus e a faca, e ambas não provavam muita coisa.

Diário de João Ribeiro 3 / 12

De súbito dei um pulo e levantei do banco, indignado e assustado ao mesmo tempo, e parti para tirar satisfações. Certamente assustei a bela ao meu lado, pois só me lembro de ter notado ela carregando suas coisas do chão. Eu já estava me acostumando à idéia de ser assombrado, então meu susto em não achar ninguém no lugar onde a "versão mendiga do Dr. Floriano" estava foi bem menor. Porém, levei outro golpe quando achei a placa que ele carregava jazida no banco. Ela de fato existia. Toquei nela e, propositalmente, me cortei com uma farpa. Era real! No entanto, por algum motivo estranho, eu não conseguia ler o que tinha escrito. Minha visão ficava turva e, ao mesmo tempo, era como se eu de repente não soubesse ler. Senti uma forte dor de cabeça quando o celular tocou. Era uma notícia ruim: minha ex-mulher havia falecido.

Diário de João Ribeiro 2 / 12

Compareci ao consultório do Dr. Floriano na Av. Angélica. Ele é psiquiatra. Não precisei marcar hora, porque ele é um amigo de um conhecido meu. Insisti que o caso era grave e ele me recebeu.

A essa hora do dia meu medo deu lugar a uma postura muito mais "racional" da coisa e meu maior temor era estar acometido de algum problema mental grave (mesmo tendo visto o cobertor no chão, minha carteira revirada e as pegadinhas feitas de caldo de feijão no teto da minha cozinha).

Diário de João Ribeiro 1 / 12

São Paulo, 11 de Abril de 2011

Começo a relatar aqui minha história, enquanto aguardo por meu terrível destino, na esperança de deixar registrado o que os meus algozes são capazes de fazer. Minhas investigações só conseguiram mostrar que são homens de poder contra os quais nada posso fazer.

Declaro que eu, João Ribeiro dos Santos, 42 anos, natural de Presidente Prudente, São Paulo, estou em plenas faculdades mentais, e livre de qualquer tóxico ou entorpecente quando narro estas palavras.

Estou em meu pequeno apartamento no bairro de Santa Cecília, São Paulo. Já está escuro lá fora, mas ainda não são 22:15h. Me espremo como posso em minha pequena janela de angústia e pavor enquanto aguardo os momentos de terror que me afligem todas as noites sempre no mesmo horário, mas que prometem ser as últimas da minha vida.

Todas as luzes estão devidamente acesas a minha volta. E elas tem de estar: desde que minha aflição começou elas sempre surgiram das sombras mais inimagináveis! Como se fossem portais para o inominável. E sempre nesse mesmo horário.

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