Diário de João Ribeiro 7 / 12

Eu nem sabia que Gerson ainda tinha contato com Débora. Ela foi sua namoradinha durante nosso período de faculdade. Era uma japonesinha baixinha muito magra e bem tímida, sem muitos atrativos. Eram muito próximos, mas terminaram o relacionamento pouco depois que nos formamos, não sei muito bem o porquê.

Nem tive tempo de absorver tudo aquilo quando, pouco depois de Gerson, é o Dr. Floriano que me liga. Estava fulo da vida comigo. Me dissera que ele iria pagar as despesas do hospital se eu concordasse em nunca pisar em seu consultório de novo. Não tentei argumentar. O que eu podia dizer? Que estava desconfiado de um conluio entre ele e a viúva fantasmagórica? E depois, ele nem me deixava falar mesmo, com tanta raiva...

Decidi voltar para casa, mas Gerson estava muito abalado e não queria ficar sozinho. Então decidimos ir todos para minha casa assim que recebi alta. Eram quase 20h quando finalmente chegamos em casa e aquele dia frustrante parecia ter chegado ao fim.


Inquiri Gerson sobre como foi sua tarde. Muito agitado, ele me disse que procurou lugares públicos depois da experiência traumatizante da outra noite. Ele se meteu a beber em um dos quiosques do Mercado Municipal e nem passou no trabalho (coisa que também não fiz desde que tudo começou. Nem satisfação dei e desconfio de que já não preciso mais...). De forma muito confusa e sem nexo, ele me contou que achou ter visto Débora no mercado. Saiu em seu rastro e, poucos metros da Rua 25 de Março, um morador de rua, sem mais nem menos, se levantou de seu torpor, a agarrou e lhe cortou a garganta. Ali, em plena luz do dia, em meio aquela gente toda. Ele se sentia muito culpado porque tinha bebido além da conta e não pôde acompanhar seus passos.

Seguindo a mesma linha de raciocínio em que a resposta está nas visões, relembrei a última e imaginei que a foto que sumiu da minha carteira não estava emoldurada naquele grande quadro a toa.

Depois dessa passagem, Gerson mudou muito. Estava cada vez mais calado. E, quando abria a boca, era só para dizer frases pessimistas. Ficou recolhido como se estivesse molhado e com frio, mas na verdade se sentia desamparado. Foi numa dessas frases pessimistas que levantamos a hipótese de que todos da foto estavam sendo mortos.

Eu estava pior do que nunca. Disse "estava" no singular porque não dava mesmo para contar com Gerson. Ele era um daqueles caras que tomam a frente de tudo, que é racional mais do que tudo. Eu tinha que fazer alguma coisa. Tentei raciocinar para tentar antecipar o que estava acontecendo. Então, montei esse padrão louco em que as visões sempre começavam às 22:15h e que os demônios precisavam da escuridão para se materializar.

Fiquei um tempo pensando nisso sem dizer nada, só rabiscando um bloco de papel. Deixei Gerson vendo TV e tomando café frio, porque a cozinha ainda estava um desastre e não dava para deixar ele limpar o fogão, fazer café ou qualquer outra coisa sem pensar nele explodindo tudo.

Comecei a beber e dei asas a minha imaginação. Acho que esse foi o maior erro... Bebi todo o tipo de porcaria que eu tinha e comecei a fantasiar "complôs" do além.

Cheguei a conclusão de que, se eu reduzisse a escuridão, poderia reduzir o tamanho das assombrações que surgissem. Corri até um quartinho de bagunça e busquei um holofote daqueles que os fotógrafos e operadores de câmera usam que esqueceram em casa durante o período de faculdade. Peguei todo o tipo de luzes que encontrei, exceto velas (por considerar "culturalmente ligada a coisas de outro mundo") e espalhei pela casa. Fiquei até estimulado com a mobilização que tive uma idéia cretina: se eu pudesse controlar a passagem por onde aquelas coisas pudessem se materializar, eu poderia até escolher o que poderia se materializar. Então decidi raptar o pirralho.

Só contei para meu amigo meu plano depois que montei todo o aparato. Ele riu no começo mas aceitou ajudar. Combinamos de iluminar tudo, exceto por uma fresta do tamanho suficiente em que ele pudesse aparecer rastejando, para ter certeza de que nada maior passasse. Escolhemos uma caixa de papelão antiga em que um dia abrigou o aparelho de televisão que ele assistia.

Estávamos mesmo viajando nesse plano louco... Mesmo sendo muito difícil escrever essa história fantástica agora, percebo como era idiota essa idéia... Iríamos pegar o pirralho e depois?!? Iríamos interrogá-lo?!? Iríamos pedir um resgate ao inferno?!?

Nos trancamos no meu quarto e nos encostamos na parede para garantirmos que nossas sombras não permitissem que nada mais aparecesse. Gerson segurava um rodo nas mãos e eu um saco vazio grande de areia.

Esperamos e esperamos... Depois de um tempo, me senti um adulto vivendo uma nova infância, brincando como uma criança boba brincando de faz-de-conta.

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