O Homem sem Cabeça

Natália é uma menina de 16 anos que está acostumada a não ser levada a sério. Tem sérios problemas quanto a sua timidez e pouca habilidade em conquistar amigos. E, para piorar mais ainda, tem pouquíssima auto-confiança. Além de uma autoestima que não alcança sequer seu próprio tornozelo.

Natália estuda em um colégio para adolescentes ricos, próximo da Avenida Paulista. Está acima do peso, usa agasalhos esportivos com zíper, sempre fechados até o colarinho - faça frio ou calor - e sempre amarra mal seus cadarços. Frequentemente os esquece soltos, o que lhe provoca hilariantes topadas e tombos. Quando era mais nova, sua inocência bovina lhe atraía os olhares quando era flagrada conversando com formigas no recreio...

Bullyings sempre estavam no cardápio do dia e, devido às suas boas notas, seus pais nunca levavam suas queixas a sério. E, para falar a verdade, essas queixas não passaram de duas vezes das muitas em que ocorreram, tamanha a descrença que a menina creditava a seus próprios pais.

Outro fato importante sobre Natália, é que ela tem um irmãozinho de quatro anos, super protegido e, como toda criança super protegida, com tendência a crescer completamente sonsa...


Mas esta não é mais uma história comum sobre adolescentes desajustados. Mas sim de um evento tenebroso que lhe acometeu e resultou numa tragédia sem precedentes.

Certa vez, Natália foi acometida por uma brincadeira leviana e cruel. Descobriram uma paixão secreta da moça e fizeram falsos amigos se aproximarem dela para a incentivar a tomar a iniciativa. A declaração atrapalhada foi registrada em um celular e gritada aos quatro cantos do mundo! O escárnio de todos a magoaram duramente e marcaram feridas difíceis de cicatrizar em sua alma.

Miserável, a pobre Natália se trancou em seu próprio mundo simplório, incompleto, auto-piedoso, auto-centrado e míope - como é a visão turva do mundo de todo adolescente. Seja ele bonito ou feio, popular ou recluso. Após derramar litros de lágrimas e de não conversar com ninguém, ela fez seu caminho costumeiro de volta para casa, descendo no metrô Santana. Desta vez, preferiu fazer o caminho a pé. Preferia evitar o convívio com outras pessoas dentro de um mesmo espaço físico, então decidiu se espalhar na multidão.

Quando cruzou a Rua Gabriel Pizza, notou as dezenas de rabiscos pendurados às paredes, feitos pelos moradores de rua que aguardam a ajuda da Igreja.

Pouca gente que passa pela rua nota como são curiosos esses rabiscos: muitos contém fórmulas matemáticas relacionadas ou não à lógica. Pedaços de letras de música, profecias, delírios e outras frases sem contexto ou sentido.

Natália pousou seus olhos em um desses rabiscos e viu um muito estranho, consistido por um círculo entrecortado por algumas linhas e uns dizeres escritos, repletos de erros gramaticais, mas que pareciam ter sido tirados de um texto maior e mais complexo. Dizia: "AMALDIÇOO MEUS INIMIGOS. QUE VENHA O CASTIGO QUE O RECEBO A MINHA CASA COMO MEU CONVIDADO" acompanhado por outras fórmulas matemáticas.

Ainda com lágrimas nos olhos, ela destacou aquele papel sujo da parede e o levou consigo para casa. Pensou em contar o que aconteceu na escola para seus pais, mas desistiu quando notou que a casa estava vazia. Então, foi para o quintal e se pôs a proferir as palavras do rabisco grotesco, primeiro em seu íntimo, depois um pouco mais alto, ainda assim não mais do que um sussurro. Em seguida, quando percebeu ter decorado as palavras, mentalizou o desenho e proferiu as palavras do fundo da alma.

É bom frisar que Natália nunca pensou que aquilo tivesse algum significado. Usava aquilo mais como uma válvula de escape. Ela não tinha religião, não acreditava em nada e nada no seu mundo justificava o seu sofrimento. Aquele ritual era só uma forma muito esquisita de desabafar sem que aquilo ferisse ninguém.

Os eventos que se sucederam a tarde não trazem grande mudanças aos fatos. Porém, à noite, Natália foi acometida por um pesadelo terrível.

Sentada a cama, olhando a janela à direita - que dava para o corredor que levava a porta da casa, ela avistou a imagem de um homem sem cabeça usando um grande manto negro se dirigir a sua porta. Ele não caminhava, simplesmente deslizava. Como se flutuasse, ou apenas tivesse rodas de baixo dos pés. Ele foi até a porta e bateu. Em seguida, uma tenebrosa voz, que deveria ser da entidade, vibrou a casa toda e parecia vir de um ponto muito distante, mas ao mesmo tempo muito presente:

ABRA A PORTA! ABRA A PORTA! ME DEIXE ENTRAR!

Natália perdeu a voz. Se ela mal estava acostumada a falar com os vivos, o que diria com os mortos?

E, novamente, a ensurdecedora voz ecoava:

ABRA A PORTA! ABRA A PORTA! ME DEIXE ENTRAR!

Era uma voz horrenda. Difícil de descrever. Abominável. Parecia imperiosa, solene e, ao mesmo tempo, doente e tortuosa. Parecia ter vindo de uma única garganta e, ao mesmo tempo, de uma multidão de condenados. Era catarrenta, cheia de ódio, ameaçadora, assustadora.

Natália temia muito estabelecer contato com algo tão amedrontador. E, mesmo se fosse capaz, não sabia o que dizer. E, assim, permaneceu muda.

Natália acordou muito assustada. O susto foi tremendo que ela esqueceu completamente da humilhação por que passara. Antes, ela não concebia voltar para escola. Agora, a humilhação era nada perto daquilo. Ela sabia que aquilo podia ser um fato isolado, mas podia não ser - temia estar ficando louca. Podia ser um sonho, mas era tão vívido que podia não ser.

E, mais uma vez, ela não contou nada prá ninguém...

No meio da aula, os risos podiam ser ouvidos a todo instante. No intervalo entre a primeira e segunda aula, alguém jogou-lhe um papel amassado na cabeça com a frase "eu te amo, assinado: Monstrinha", cortando totalmente sua corrente de pensamentos, que agora girava em torno do pesadelo, lhe enchendo de ódio. Por um instante, desejou que o autor do golpe fosse para o inferno e, da forma mais absurda possível, um grito foi ouvido. E eis que um aluno cai duro no chão, vítima de um ataque do coração... (um jovem perfeitamente saudável de 16 anos, diga-se de passagem).

Não há muito o que dizer sobre a correria: a ambulância, os pára-médicos, os choros, os pais indignados com a situação, etc. E, mesmo se você a perguntasse, Natália não saberia contar o que houve. Sua memória se limitava a pequenos fragmentos do ocorrido.

À noite, Natália teve o mesmo terrível pesadelo: o homem sem cabeça veio deslizando da mesma forma até a porta de seu quarto, batendo e gritando com a voz de uma multidão enfurecida:

ABRA A PORTA! ABRA A PORTA! ME DEIXE ENTRAR!

Recolhida sob as cobertas, Natália chorava e implorava prá si mesma para que ele fosse embora. Mas, após um breve silêncio, a porta era esmurrada novamente e outra vez aquela ordem, poderosa como o trovão, atingia em cheio seus ouvidos e fazia tremer a casa toda:

ABRA A PORTA! ABRA A PORTA! ME DEIXE ENTRAR!

Aquilo não ia embora. Ficou pelo menos uma meia hora naquela situação, quando aquilo se vira e decide visitar o quarto ao lado...

Natália entrou em desespero. Ela sabia que aquilo era um sonho, mas não conseguia acordar dele. Parecia que tudo ficava lento quando ela notava o terrível homem sem cabeça se dirigir ao quarto do irmão e repetir aquelas mesma frase terrível:

ABRA A PORTA! ABRA A PORTA! ME DEIXE ENTRAR!

Natália ouve a voz de sono do irmão dizendo: "Entre! A porta está aberta!" e cai em paralisia no chão a caminho a porta. Mesmo assim via, inexplicavelmente através da parede, tudo o que se passava no quarto ao lado: quando o homem sem cabeça entra no quarto do irmão e se aproxima dele e o encontra imóvel e indefeso chorando vendo o fantasma entrar, e tirando uma grande unha de baixo do manto e marcando o mesmo símbolo do rabisco, encontrado por ela, em sua barriga. Em seguida, projeta uma imagem medonha na outra parede e obriga o garoto a vê-la. Em seguida, ela perde os sentidos e apaga.

Não tem aula no dia seguinte, devido à tragédia ocorrida na escola. Natália acorda e vai tomar seu café. Antes ela passa pelo quarto do irmão e o acha vazio. Na cozinha, os pais estão aflitos: todos rodeiam seu irmão.

- Ele parou de falar! - Diz a mãe aflita, enquanto tenta fazer o menino comer alguma coisa
- Ele acordou com essa ferida horrível na barriguinha! Quem fez essa monstruosidade? - Continua o pai

Com aparência de quem sabe demais, Natália se aproxima e nem pede para ver a ferida por já conhecer o desenho. Ela nota que o menino mal pisca e fica fitando o horizonte. Ela sabe o que houve. Ela está assustada e desesperada com a situação, mas está mais conformada porque ela sabe o que ocorreu. Então, como ocorre com a mente de todos os gênios e pessoas metódicas, Natália decide perguntar a única coisa que ela ainda não sabe:

- Vítor, me conta, o que tinha na imagem que ele te mostrou?

Para espanto de todos, Vítor olha para a irmã e, finalmente, responde algo espantoso:

- O fim do mundo.

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