Natália estuda em um
colégio para adolescentes ricos, próximo da Avenida Paulista. Está acima do
peso, usa agasalhos esportivos com zíper, sempre fechados até o colarinho -
faça frio ou calor - e sempre amarra mal seus cadarços. Frequentemente os
esquece soltos, o que lhe provoca hilariantes topadas e tombos. Quando era mais
nova, sua inocência bovina lhe atraía os
olhares quando era flagrada conversando com formigas no recreio...
Bullyings sempre estavam no cardápio do dia e,
devido às suas boas notas, seus pais nunca levavam suas queixas a sério. E,
para falar a verdade, essas queixas não passaram de duas vezes das muitas em
que ocorreram, tamanha a descrença que a menina creditava a seus próprios pais.
Outro fato
importante sobre Natália, é que ela tem um irmãozinho de quatro anos, super
protegido e, como toda criança super protegida, com tendência a crescer
completamente sonsa...
Mas esta não é mais
uma história comum sobre adolescentes desajustados. Mas sim de um evento
tenebroso que lhe acometeu e resultou numa tragédia sem precedentes.
Certa vez, Natália
foi acometida por uma brincadeira leviana e cruel. Descobriram uma paixão
secreta da moça e fizeram falsos amigos se aproximarem dela para a incentivar a
tomar a iniciativa. A declaração atrapalhada foi registrada em um celular e
gritada aos quatro cantos do mundo! O escárnio de todos a magoaram duramente e
marcaram feridas difíceis de cicatrizar em sua alma.
Miserável, a pobre
Natália se trancou em seu próprio mundo simplório, incompleto, auto-piedoso,
auto-centrado e míope - como é a visão turva do mundo de todo adolescente. Seja
ele bonito ou feio, popular ou recluso. Após derramar litros de lágrimas e de não
conversar com ninguém, ela fez seu caminho costumeiro de volta para casa,
descendo no metrô Santana. Desta vez, preferiu fazer o caminho a pé. Preferia
evitar o convívio com outras pessoas dentro de um mesmo espaço físico, então
decidiu se espalhar na multidão.
Quando cruzou a Rua
Gabriel Pizza, notou as dezenas de rabiscos pendurados às paredes, feitos pelos
moradores de rua que aguardam a ajuda da Igreja.
Pouca gente que
passa pela rua nota como são curiosos esses rabiscos: muitos contém fórmulas
matemáticas relacionadas ou não à lógica. Pedaços de letras de música,
profecias, delírios e outras frases sem contexto ou sentido.
Natália pousou seus
olhos em um desses rabiscos e viu um muito estranho, consistido por um círculo
entrecortado por algumas linhas e uns dizeres escritos, repletos de erros
gramaticais, mas que pareciam ter sido tirados de um texto maior e mais
complexo. Dizia: "AMALDIÇOO MEUS INIMIGOS. QUE VENHA O CASTIGO QUE O
RECEBO A MINHA CASA COMO MEU CONVIDADO" acompanhado por outras fórmulas
matemáticas.
Ainda com lágrimas
nos olhos, ela destacou aquele papel sujo da parede e o levou consigo para
casa. Pensou em contar o que aconteceu na escola para seus pais, mas desistiu
quando notou que a casa estava vazia. Então, foi para o quintal e se pôs a
proferir as palavras do rabisco grotesco, primeiro em seu íntimo, depois um
pouco mais alto, ainda assim não mais do que um sussurro. Em seguida, quando
percebeu ter decorado as palavras, mentalizou o desenho e proferiu as palavras
do fundo da alma.
É bom frisar que
Natália nunca pensou que aquilo tivesse algum significado. Usava aquilo mais
como uma válvula de escape. Ela não tinha religião, não acreditava em nada e
nada no seu mundo justificava o seu sofrimento. Aquele ritual era só uma forma
muito esquisita de desabafar sem que aquilo ferisse ninguém.
Os eventos que se
sucederam a tarde não trazem grande mudanças aos fatos. Porém, à noite, Natália
foi acometida por um pesadelo terrível.
Sentada a cama,
olhando a janela à direita - que dava para o corredor que levava a porta da
casa, ela avistou a imagem de um homem sem cabeça usando um grande manto negro
se dirigir a sua porta. Ele não caminhava, simplesmente deslizava. Como se
flutuasse, ou apenas tivesse rodas de baixo dos pés. Ele foi até a porta e
bateu. Em seguida, uma tenebrosa voz, que deveria ser da entidade, vibrou a
casa toda e parecia vir de um ponto muito distante, mas ao mesmo tempo muito
presente:
ABRA A PORTA! ABRA A
PORTA! ME DEIXE ENTRAR!
Natália perdeu a
voz. Se ela mal estava acostumada a falar com os vivos, o que diria com os
mortos?
E, novamente, a
ensurdecedora voz ecoava:
ABRA A PORTA! ABRA A
PORTA! ME DEIXE ENTRAR!
Era uma voz
horrenda. Difícil de descrever. Abominável. Parecia imperiosa, solene e, ao
mesmo tempo, doente e tortuosa. Parecia ter vindo de uma única garganta e, ao
mesmo tempo, de uma multidão de condenados. Era catarrenta,
cheia de ódio, ameaçadora, assustadora.
Natália temia muito
estabelecer contato com algo tão amedrontador. E, mesmo se fosse capaz, não
sabia o que dizer. E, assim, permaneceu muda.
Natália acordou
muito assustada. O susto foi tremendo que ela esqueceu completamente da
humilhação por que passara. Antes, ela não concebia voltar para escola. Agora,
a humilhação era nada perto daquilo. Ela sabia que aquilo podia ser um fato
isolado, mas podia não ser - temia estar ficando louca. Podia ser um sonho, mas
era tão vívido que podia não ser.
E, mais uma vez, ela
não contou nada prá ninguém...
No meio da aula, os
risos podiam ser ouvidos a todo instante. No intervalo entre a primeira e
segunda aula, alguém jogou-lhe um papel amassado na cabeça com a frase "eu te amo, assinado: Monstrinha",
cortando totalmente sua corrente de pensamentos, que agora girava em torno do
pesadelo, lhe enchendo de ódio. Por um instante, desejou que o autor do golpe
fosse para o inferno e, da forma mais absurda possível, um grito foi ouvido. E
eis que um aluno cai duro no chão, vítima de um ataque do coração... (um jovem
perfeitamente saudável de 16 anos, diga-se de passagem).
Não há muito o que
dizer sobre a correria: a ambulância, os pára-médicos, os choros, os pais
indignados com a situação, etc. E, mesmo se você a perguntasse, Natália não
saberia contar o que houve. Sua memória se limitava a pequenos fragmentos do
ocorrido.
À noite, Natália
teve o mesmo terrível pesadelo: o homem sem cabeça veio deslizando da mesma
forma até a porta de seu quarto, batendo e gritando com a voz de uma multidão
enfurecida:
ABRA A PORTA! ABRA A
PORTA! ME DEIXE ENTRAR!
Recolhida sob as
cobertas, Natália chorava e implorava prá si mesma para que ele fosse embora.
Mas, após um breve silêncio, a porta era esmurrada novamente e outra vez aquela
ordem, poderosa como o trovão, atingia em cheio seus ouvidos e fazia tremer a casa
toda:
ABRA A PORTA! ABRA A
PORTA! ME DEIXE ENTRAR!
Aquilo não ia
embora. Ficou pelo menos uma meia hora naquela situação, quando aquilo se vira e decide visitar o quarto ao
lado...
Natália entrou em
desespero. Ela sabia que aquilo era um sonho, mas não conseguia acordar dele.
Parecia que tudo ficava lento quando ela notava o terrível homem sem cabeça se
dirigir ao quarto do irmão e repetir aquelas mesma frase terrível:
ABRA A PORTA! ABRA A
PORTA! ME DEIXE ENTRAR!
Natália ouve a voz
de sono do irmão dizendo: "Entre! A porta está aberta!" e cai em
paralisia no chão a caminho a porta. Mesmo assim via, inexplicavelmente através
da parede, tudo o que se passava no quarto ao lado: quando o homem sem cabeça
entra no quarto do irmão e se aproxima dele e o encontra imóvel e indefeso
chorando vendo o fantasma entrar, e tirando uma grande unha de baixo do manto e
marcando o mesmo símbolo do rabisco, encontrado por ela, em sua barriga. Em
seguida, projeta uma imagem medonha na outra parede e obriga o garoto a vê-la.
Em seguida, ela perde os sentidos e apaga.
Não tem aula no dia
seguinte, devido à tragédia ocorrida na escola. Natália acorda e vai tomar seu
café. Antes ela passa pelo quarto do irmão e o acha vazio. Na cozinha, os pais
estão aflitos: todos rodeiam seu irmão.
- Ele parou de
falar! - Diz a mãe aflita, enquanto tenta fazer o menino comer alguma coisa
- Ele acordou com
essa ferida horrível na barriguinha! Quem fez essa monstruosidade? - Continua o
pai
Com aparência de
quem sabe demais, Natália se aproxima e nem pede para ver a ferida por já
conhecer o desenho. Ela nota que o menino mal pisca e fica fitando o horizonte.
Ela sabe o que houve. Ela está assustada e desesperada com a situação, mas está
mais conformada porque ela sabe o que ocorreu. Então, como ocorre com a mente
de todos os gênios e pessoas metódicas, Natália decide perguntar a única coisa
que ela ainda não sabe:
- Vítor, me conta, o
que tinha na imagem que ele te mostrou?
Para espanto de
todos, Vítor olha para a irmã e, finalmente, responde algo espantoso:
- O fim do mundo.
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