Diário de João Ribeiro 8 / 12

O pirralho apareceu, mas de baixo da cama e não da caixa, como tínhamos imaginado. Engatinhava usando um pijaminha listrado, na sua forma de menino normal. Gerson quase surtou quando viu o garotinho surgindo de onde não havia nada. E confesso que também eu fiquei surpreso, porque não esperava que surgisse de lá. Como quem caçasse uma barata, me libertei de minha inércia e me adiantei o cercando, antes que ele fizesse algo assustador e nos paralisasse de medo.


A primeira coisa que notei foram nas mãos dele: intactas. Nenhum dedo decepado, como deveriam. O pirralho brincava comigo naquela noite e não havia nenhum motivo para confiar naquilo. Gerson hesitou. Ele não avançou como planejamos e ficou gaguejando sobre a criatura ser apenas um menino. Tentei extrair alguma racionalidade dele com um grito, sempre sem tirar os olhos da criatura que se achava acuada:

- Gerson! Venha cá! Me ajude!
- João, é só um menino!
- Cala essa boca! Você viu de onde esse menino apareceu? Não é um garoto coisa nenhuma! É um demônio dos infernos e é prá lá que ele vai voltar!

O menino se pôs a chorar e esticou os braços para Gerson em gesto de súplica e proteção, como quando uma criança pede para ser carregada. Então Gerson enlouqueceu de vez e partiu para cima de mim. Senti o cabo do rodo que carregava zunindo na minha orelha e me estatelei no chão, atordoado. Me levantei e outra paulada, agora nas costas! Na terceira me defendi e o empurrei e retruquei:
ESTÁ LOUCO, HOMEM?!?

Gerson continuava com seus argumentos, como se nunca tivesse sofrido aquele pesadelo da outra noite. Sempre que eu tentava acertar o garoto ele se jogava sobre mim e logo o quarto estava em ruínas. Ele parecia cada vez mais forte e logo estava a me sufocar. Repetia frases sem nexo. Ora me culpando pela morte de Débora, ora pela da minha ex-esposa. Dizia que a culpa era minha porque eu vendera minha alma para a viúva misteriosa e agora ele é que tinha que carregar o fardo por me ajudar. Quase sem fôlego tenho a impressão de ouvir de seus lábios transtornados aquela frase medonha que me perseguia: "você não tem coragem.

Não tive escolha se não me defender. Ele apertava meu pescoço com uma força que eu nunca imaginei que tivesse. Peguei a primeira coisa que estava ao alcance sem ver bem o que era e acertei sua cabeça em cheio, espatifando-a como um ovo cru e espalhando seus miolos na parede branca. Senti meu pescoço aliviado e o peso do corpo que caiu de lado. Então olhei para a arma que usara contra meu agressor e, horrorizado, percebi ser aquela faca maldita de fio comprido, de que tanto fugira...

E foi assim que matei Gerson.

Olhei para a cena e me desabei em pranto. Caí de joelhos diante do corpo falecido. E vi aquele desgraçadozinho dançando e cantando pelo quarto comemorando, na sua forma normal, me enchendo de raiva, porque nem medo dele eu sentia. Em vez disso, sentia ódio da minha impotência. Sabia que tinha matado meu amigo com aquela maldita arma e do jeito que eles queriam, como um truque ardil desde o início. E eu que me achava tão esperto!! Que tinha um grande trunfo na manga!

Então, muito cansado e muito triste, me levanto e avisto o garoto pulando em minha cama, me encarando. Espantado, ouço ele falar:

- Por que está chorando?

Toda a minha impotência diante da situação se condensava em um ódio que eu nunca sentia antes. Eu via aquele pirralho dos infernos inclinando a cabecinha inocente e dócil me fazendo aquela pergunta debochada como se fosse nada! E, ao perceber que eu não podia fazer nada fisicamente contra aquele miserável, dei um grito horrendo com uma voz que não era minha:

- DESGRAÇAAAAAAAAAAAADOOOO!

Parti para cima do fedelho e novamente senti que tinha os sentidos aguçados demais para a realidade. Eu podia sentir a quilômetros de distância, do apartamento de Gerson, que o Dr. Floriano transfigurado ainda violentava o corpo daquela pobre loira como se uma multidão pulasse sobre a cama de forma descompassada. E eu podia sentir o meu outro "eu" congelado sobre o vaso, sentado de cócoras, amedrontado, com os olhos fundos e muito negros, escorrendo aquele borrão cor-de-petróleo dos olhos sobre as bochechas. E eu, de repente, não era mais eu. Mas aquela versão atrofiada que tentava entrar no banheiro com joelhos onde deviam haver mãos. Mas nada disso me dava medo. Nada me impedia de me vingar daquele desgraçado e voei sobre sua garganta! Com toda minha grotesca forma, toda minha ira. E, por um instante, vejo os olhinhos antes confiantes vacilarem de medo. Como se tivessem saído de um transe. Mas já era tarde: esmaguei seu pescoço como se fosse um graveto e destrinchei o fedelho como se fosse um porco sem o auxílio de nenhuma arma! Em pouco tempo, minha cama se tornou um poço de sangue e tripas.

Depois, me veio um resquício de razão do pouco de humano que ainda sobrava em mim: todos da foto desaparecida - exceto eu - estavam mortos. Bom, minha morte era uma questão de tempo, não haviam dúvidas (ainda mais depois de matar aquela peste que eu julgava ser filho da viúva misteriosa), mas e a própria peste? Se tudo fosse um ardil das trevas, por que consegui matar o garoto? Será que ele estava na foto?

Fui tomado de uma certeza de que minha carteira estava na sala - com a foto intacta dentro - e consegui conduzir meu corpo asqueroso até lá, me movendo como uma lagartixa pela parede, com extrema agilidade, mas derrubando tudo atrás de mim. Avistei o cabideiro perto da porta da saída e arranquei desajustadamente a calça que descansava pendurada, espalhando todas as coisas no chão. Comecei a revirar com muita dificuldade a carteira, porque não tinha mãos, e achei a foto: exatamente a mesma que conhecia. Exceto por um detalhe: no fundo, quase imperceptível, avisto um homem e uma mulher carregando um bebê olhando para mim. O bebê tinha patas de animais e o rosto do casal estava borrado, mas o homem tinha traços do Dr. Floriano...

Para deixar o leitor ciente, que fique bem claro de que eu conhecia muito bem essa foto. Esse detalhe bizarro que eu notei nunca estivera nela. Não tinha como.

Percebi estar no mesmo Dèéjá vu da primeira noite. Mas em vez de ficar apavorado, fui tomado mais uma vez de fúria e decidi tentar de alguma forma interromper aquela primeira noite, acabando com o menino e a viúva antes que os fatos se desenrolassem. Então, atravessei o banheiro com movimentos desajeitados e com uma agilidade bestial. Como um trem, como uma grande lagarta, como algo fantasmagórico demais para explicar. Destruí a cozinha toda, esparramei as panelas de feijão sobre o fogão, rastejei pelo teto, pelas paredes, pelo chão, por tudo. Até chegar ao banheiro. Porém, eu não tinha mãos, tinha joelhos no lugar delas. E um ódio descomunal me fazia querer atravessar a porta com os olhos. Eu tentava desesperadamente abrir a porta, mas não conseguia! Sentia aquele moleque dos infernos me apavorando lá dentro, enquanto meu eu da outra noite temia que ele estivesse aqui fora tentando entrar. Eu sentia ele e a viúva zombarem de mim ocultos pelo box. E como não conseguia abrir a porta, dei um uivo de decepção e derrota... (Bom, acho que já repeti essa passagem algumas vezes...)

Voltei pela cozinha, destruindo o pouco dela que ainda estava em pé, derrubando agora as panelas que estavam penduradas e espalhando feijão pelo teto.

E eu senti a brisa vindo aos poucos e o burburinho das primeiras pessoas que iam para o trabalho vindo da rua. Aquela noite nefasta acabara com um gosto de derrota amargo na boca.

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