Diário de João Ribeiro 11 / 12

Eu não tinha dormido, não tinha almoçado e também não tinha tomado banho. Estava cheirando a suor, plantado num poste perto da LBV e morrendo de fome e dor de cabeça. Eram 16 horas e meu coração disparava esperando a visita da madrasta do garoto. Um turbilhão de coisas passavam pela minha cabeça. As idéias se embaralhavam, me impedindo de tomar qualquer decisão. Eu não sabia se diria a ela que tinha matado seu afilhado, ou se me restringia apenas nos pesadelos. Passadas 2 horas, noto parar um veículo grande, que não me lembro bem de que modelo que era. Dr. Floriano estava sentado no banco de trás e não deu para ver muito bem quem o conduzia. Ele abre a porta e me diz: "venha, entre meu filho". Sua expressão passava cansaço e impaciência.


O diálogo a seguir é a reprodução mais fiel que consegui lembrar da conversa que se sucedeu dentro do carro:

- Para onde estamos indo? (perguntei depois de uns 5 minutos de silêncio)
- Vamos dar umas voltas para esclarecermos algumas coisas e depois te deixo em casa. (ele me respondeu sem olhar para minha cara)
-  O que tem para ser esclarecido? Eu marquei um encontro com a sua paciente e parece você! O que está acontecendo??
- Está acontecendo é que você não vai mais incomodar aquela pobre mulher.
- Ela falou com você? O que mais ela é sua? Sua amante? Por que ela te procurou?
- Olha garoto, eu não preciso te responder a essas frivolidades que está me lançando, mas se calar a boca eu talvez responda a uma pergunta ou outra!

Me calei na mesma hora. Sua fala tinha uma autoridade forte. E o discurso incluía alguma resposta pela primeira vez. Depois de um longo suspiro, ele continuou:

- Você precisa terminar o que já começou... Falta pouco agora. As coisas podem não fazer sentido porque elas são muito maior do que você. Mas pela sua insistência provavelmente já entendeu alguma coisa, embora qualquer que seja o seu nível de entendimento, ele é ínfimo perto do quadro todo.

(pausa para outro suspiro)

- Você deve ter ouvido que aquela mulher cria um menino que não veio de seu ventre. Essa história não é de toda verdade. Ela não podia engravidar. Ela foi casada com um outro homem antes do atual. Um homem rico que desejava, antes de tudo, um filho.

Ela procurou todos os especialistas de que tinha notícia, mas sem sucesso. Estava desacreditada. Então nos procurou. Com a nossa ajuda, ela finalmente concebeu um bebê. Mas o bebê errado. A criança nasceu sem as feições dos progenitores e com a personalidade de um demônio oculta pelo véu da noite.Não era ele que tínhamos evocado.Eu não espero, obviamente, que você entenda o que quero colocar...

 O marido não aceitou o bebê (ele não sabia da nossa existência) e rejeitou o bebê e a mulher, a acusando de adultério. Ela ficou desamparada e sem recursos. Nos sensibilizamos, mesmo sem entender o que ocorreu errado no ritual. E, antes que você polua minhas palavras com pensamentos mundanos e impuros, lhe asseguro que não existem descendentes orientais em nossa organização. Somos extremamente elitistas com nossos membros e em sua linhagem.

A fim de auxiliá-la, cuidamos de sua mudança de cidade e contratamos um comerciante em dificuldades que tinha as feições do bebê e nos devia favores, para que a mulher não sofresse nenhum tipo de preconceito por parte da sociedade. O tempo passou e ela começou a ter terríveis visões durante a noite. Sempre no mesmo horário. Começou a acordar em lugares estranhos da cidade, como se estivesse caminhando dormindo, sem saber como foi parar lá.

Logo, outras pessoas que participaram do culto começaram a ter as mesmas visões e a acordar em locais estranhos da cidade (incluindo o homem que contratamos para ser o falso-pai da criança, sendo que ele não tinha a menor idéia do ocorrido). Recorremos às pessoas mais experientes da nossa ordem, mas nem mesmo eles conseguiram achar um motivo razoável para os sintomas. Temíamos pela nossa sanidade, da mulher e da criança. Então, partiu do nosso líder supremo uma ordem inquestionável: tínhamos que reverter o ritual.

Trata-se de um procedimento usado somente em último caso e que é de conhecimento somente dos membros mais antigos.

Você conhece o Rubens, ele é dono de uma concessionária de veículos perto da Av. Sumaré. Foi ele que nos apresentou. Ele é um membro da nossa ordem. Um membro muito ativo. Como tal, ele também foi acometido pelas visões. Em uma das ocasiões mais graves, ele despertou do transe no exato momento em que ia ligar o forno do fogão com sua pequena Aline de 3 meses dentro dele. Um outro membro chegou a despejar uma caneca de água fervendo sobre a esposa deitada na cama. Estávamos muito desesperados e aquilo tinha que acabar...

Para desfazer o ritual, era necessário emergir totalmente no éter almas que estivessem uma conexão muito grande e efetuar uma aposta sobre o destino delas.

Rubens se lembrou de sua turma de faculdade, João. Foi ele que roubou a foto de sua carteira. Através dela, tivemos a prova de que vocês foram unidos. Mesmo que nem todos estivessem juntos hoje, mas que suas almas trilharam o mesmo caminho e que estavam conectadas de alguma forma. Você foi escolhido porque não era um amigo tão íntimo de Rubens, a ponto dele sentir sua falta. Não foi nada pessoal, se fossem grandes amigos ele também pereceria.. E também porque, tendo algum tipo de laço, seria mais fácil te controlar.

A partir da foto, uma-a-uma as almas emergiram no éter... Ela foi a fonte principal que usamos para escolher as "oferendas".

Eu já estava ficando farto daquela conversa de vodu. Tentei protestar, mas ele me impediu e continuou:

Como mandam as escrituras, dividimos vocês em tragédias. A você, meu filho, foi designada a tragédia do Fratricídio. Apostamos se você teria coragem de matar seu irmão. Ou, no caso, o melhor amigo. E meu, caro, conseguimos. É por esse motivo que você foi incumbido de também matar a criança.

Me tomei de ódio e por muito pouco não esmurro a cara daquele bruxo no mesmo momento. Mas me sentia extremamente  impotente. Não importa o que acontecesse, fazia parte do plano deles. Caí em desespero com aquela culpa e aquela agonia toda me possuindo que, pela primeira vez, senti aquele mesmo sentimento que tinha quando via a viúva misteriosa durante aquelas noites pavorosas: a de que toda a agonia, todos os xingamentos, todos os açoites e todas as barbáries do mundo fossem minha culpa e se debruçassem sobre mim.

Eu, homem feito, chorei como uma criança.

Dr. Floriano fez um afago nas minhas costas que interpretei como um pedido de desculpas. Tentei sentir ainda mais raiva dele naquela hora, mas conseguia fazer mais perguntas:

- E agora?
- Agora, meu filho, você tem que terminar o que começou. Também você vai mergulhar no éter. Você já o tem experimentado todas as noites, sempre a partir das 22:15h, que é o horário em que o menino vai se deitar e que termina à manhã, quando o menino acorda para ir à escola. Durante esse período, a personalidade oculta do menino se apossa e ele não tem consciência do que ocorre. Só que, desta vez meu filho, você não vai mais sentir a brisa soprar novamente.Não vai mais ouvir o burburinho das pessoas que passam na rua e a vida retornando colorida na rua.Você terá a pior viagem de todas, que vai te enlouquecer a ponto de desejar remover os olhos da sua face, de furar-lhe os tímpanos e de lhe costurar a sua boca, para que vermes não lhe caiam dentro dela.
- Mas eu matei o filho-da-puta!!!!!!
- Correto. Só que não é o éter do menino que você vai experimentar. Será o éter de sua mãe. A mãe do éter. E ela vai vingar a morte do filho. Por isso será tão terrível seu destino.
- Ela é a sua paciente?
- Todos que recebem favores da mãe-do-éter a emprestam parte de sua aparência. Se o menino é meio-filho daquela pobre mulher que você iria perturbar, ela é filho por completo da mãe-do-éter.

Não lhe digo essas coisas para te apavorar, mas para que se prepare. Agradeça pois, na morte, você terá conforto. Não sei se nós teremos o mesmo privilégio que você na outra vida, porque é provável que outro lugar nos seja reservado. Me desculpe, você está pagando pelos nossos erros, mas essa é a estrutura do Universo. É complicado, você não entenderia. Mas precisa acabar.

Certifique-se de que nada lhes interrompa. Feche todas as janelas e portas. Não deixe que o pesadelo seja interrompido, ou ele ficará preso dentro da sua cabeça para sempre. Procure colaborar, para que o tudo acabe logo. E me desculpe mais uma vez. Não era para ser desse jeito.

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