Diário de João Ribeiro 5 / 12

A rua emudeceu novamente e o vento parou de soprar. A porta a minha frente abriu e bateu muito rápido, mas não senti nenhum vento. Naquele momento, percebi que já não estava mais sozinho. Minha boca ficou seca. Comecei a entrar em pânico e sentei na cama para ver novamente aquele pirralho dos infernos sentado no carpete! Só que agora não parecia tão aterrador: estava com uniforme de escolinha de jardim-de-infância. Ao lado, jazia uma lancheirinha vermelha.

Ele parecia bem vivo e rosado dessa vez. Não tinha mais aqueles olhos grandes e vazados e percebi pela primeira vez se tratar de um japonês. Estava sorridente e brincava com massa de modelar. Quando notou que eu o via, deu um sorriso bonito e continuou brincando. Até que abriu a lancheira e tirou um enorme alicate que tinha as pontas com aparência de tesoura, como aquelas ferramentas de eletricista.


Então, ele colocou o próprio indicador entre os fios da tesoura e se pôs a cortá-lo! Entrei em desespero, mas o menino só se divertia! Não sentia dor. Quanto mais o sangue jorrava, mais se divertia! E, quando o dedo foi totalmente decepado, o menino se pôs a cortar o polegar. Quando estava no meio do corte, a expressão do menino mudou radicalmente e começou a chorar muito. Mas continuou se mutilando assim mesmo! Parecia que não tinha mais controle sobre a própria mão e que acabava de acordar de alguma hipnose.

E o choro!... Ah aquele choro... Foi o choro mais triste que já vi... Era de cortar o coração... Ele pedia ajuda, mas eu estava paralisado numa espécie de torpor... E ele continuava a cortar o polegar, cada vez mais rápido e com mais força, enquanto se desmanchava em choro, e debatia as pernas. Reuni todas as forças, enchi os pulmões e dei um grito. Muito alto! Quase um uivo! E percebi que meu grito se tornara tão fantasmagórico como aquele mesmo choro do outro dia que eu ouvira em meu banheiro naquela noite. E o grito durou muito e eu não conseguia mais parar de gritar. Quando finalmente meus pulmões se esvaziaram, o menino sumiu. E vi Gerson abrindo a porta às pressas.

- O que foi isso,homem?!? Está louco?!?

Eu respondi que preferia estar. Ver Gerson - uma figura tão real e concreta como ele -  entrar no meu quarto me trouxe certo alívio, porque era um sinal de que o pesadelo acabara. Porém, notei que a rua continuava muda e o vento não soprava. E, desesperado, interrompi meu pobre amigo assustado:

- Saia daqui! Sai daqui!

Então, ouvi Gerson perder a compostura como nunca vi e cair sentado no chão a exclamar "Meu Deus" e "Ave Maria" muitas vezes (Gerson é ateu e nunca se interessou por religião de nenhum tipo que fosse) e quando inclinei a cabeça e olhei para o lado vi o motivo de seu susto: do meio da penumbra, como se ali escondesse uma porta - onde nada existia além do canto do quarto - surge a figura daquela mulher que eu encontrara no banheiro: branca, muito branca. Ainda parecia uma viúva coberta por um véu preto muito fino. Agora ela não tinha mais as tatuagens cobrindo os braços e eu podia ver seus olhos horrendos mortos, focalizando o nada, levantados para o teto sem acompanhar a direção do rosto. Um para cada lado, como acontece numa daquelas bonecas que abrem e fecham os olhos quando são deitadas quando estão quebradas. E seu cabelo muito liso e escorrido descendo até a cintura, de onde saíam pernas muito longas e delgadas. Pareciam borracha.

Aquela mulher horrenda surgiu muito próxima. Por algum motivo eu tinha muito medo de tocar-lhe a pele. Ela chegou tão próxima que sua bochecha morta tocou a minha e um arrepio fúnebre percorreu minha espinha de cima a baixo. Parecia me estudar e engatinhou sobre mim sentado na cama. De relance, pude ver o decote de seu vestido rasgado e lá vi seios muito murchos se projetarem sobre costelas extremamente protuberantes. Então, ela deitou sobre mim e senti tudo gelado. Senti uma imensa falta de esperança e um luto imenso pesar sobre mim. Senti a agonia de todas as viúvas do mundo, de todos os órfãos e de todas as crianças estupradas da Terra. E tive uma vontade muito grande de me suicidar. Fechei os olhos. Senti um forte cheiro de terra e também que ela me encarava com aqueles olhos mortos e horripilantes colados aos meus, enquanto se esfregava como uma serpente em mim. Fui perdendo as forças. A idéia de abrir os olhos e avistar aquela monstruosidade colada a mim, olho-a-olho me causava um pavor indescritível. Mesmo morta, ela emitia algum tipo de respiração, semelhante ao esforço que um asmático faz para procurar o ar. E, naquele esforço, dava para ouvir alguma insinuação de voz se formar nas cordas vocais: muito fina, desafinada e aterradora. Imaginar ela pronunciando alguma palavra era o suficiente para enlouquecer a maioria das pessoas. Então senti ela colocar aquela mesma faca que me dera em minha mão direita. Meu medo sobre o que eu podia fazer com essa faca caso aquilo tudo fosse uma crise de sonambulismo era tão grande que consegui reunir alguma força para jogá-la longe! Então a viúva dos infernos se transtornou e deu um pulo para trás. Fiz o impensável: desferi um chute em seu rosto morto!

O rubor voltou ao meu rosto e senti as têmporas muito quentes. Levantei de um salto e olhei para Gerson terrificado. Ele parecia estar possuído por algum tipo de transe. Fazia movimentos repetitivos e chorava muito. Corri até a porta e passamos por ela, deixando o fantasma se recompondo do chão.

Partimos a toda a velocidade, mas chegamos a um lugar que não deveríamos estar: uma sala muito grande e antiga. Parecia um museu muito pomposo. E, na parede a nossa frente avistamos um quadro imenso. Fixei os olhos para ver melhor e reconheci, perturbado, a imagem agora emoldurada na parede imensa: era a foto que sumira de minha carteira na primeira noite de minha agonia.

A foto continha algumas pessoas de minha antiga turma de faculdade. Foi nesse período que conheci minha finada-ex-esposa, Gerson e alguns de meus melhores amigos. A foto fora tirada em um churrasco. Nela estavam nós três e a namorada de Gerson na ocasião, Débora.

Gerson estava em estado de choque. Suas pernas estavam praticamente paralisadas. Tinha que se apoiar em mim para se locomover. Quando corremos, eu praticamente o arrastava feito um saco de areia.

Quando ele avistou o quadro enlouqueceu e se pôs a chorar (ainda mais porque ele se lembrava da foto). Não entendia o que se passava. Tinha medo de toda a situação e tentava em vão entender o porquê sua imagem estava naquele quadro. Mas, sobretudo, tinha medo da mulher misteriosa que nos caçara, embora a assombração nos desse descanso (ao olharmos para trás não víamos mais o corredor por onde corremos e tínhamos a impressão estranha de estarmos muito longe do quarto, embora a lógica dissesse que não).

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