Diário de João Ribeiro 10 / 12

Cecília me pediu para sentar. Sua língua estava sequiosa por tricotar a vida alheia. A situação começou a me divertir e tive um daqueles raros momentos em que se esquece dos problemas. A tonta foi até me passar um chá e esperei um pouco enquanto lutava contra a fantasia que pinicava no pescoço por causa da etiqueta mal-localizada.

Então, subitamente, parecia que quilômetros de palavras invadiam meus ouvidos! Uma enxurrada de besteiras que pouco que importavam saltavam de sua boca. Parece que a moça que eu atacara tinha fama de metida a grã-fina e, por isso, era alvo dos comentários preconceituosos de Cecília. Nem mesmo a calcinha pendurada no varal para secar foi perdoada. Até as trivialidades mais banais eram motivo para desabonar a moça. Quando meu sono atrasado ameaçava me atacar implacavelmente, um fato muito intrigante surgiu e mudou tudo...

Retrato aqui a parte útil do diálogo que tivemos, tal como ele ocorreu, tentando manter do jeito que a mulher me falava para minimizar ao máximo mudanças de interpretação de minha parte:


- Mas essa metida não é feliz não senhor! Ela pode ser bonita por fora, mas por dentro é fria como o aço!
- Por favor, prossiga (respondi impaciente)
- Você sabe que ela é madrasta do menininho? A brigaiada é porque a biscate não sente nenhum amor pelo menino! Inté esses negócio de psicólogo ela já tava indo!
- Sério?
- Sério! E o pior é que enquanto o marido tava fora, parece que ela e o filho andava tendo uns pesadelo! Prá mim isso é desculpa prá pular a cerca! Esse japonês que não abre o olho prá ver! E agora parece que o menino desapareceu! Tão tudo aflito! Já ouvi falar até em divórcio!

Agradeci e saí. Parei em uma esquina próxima e improvisei a parede de banquinho enquanto enxugava o suor da testa: então ela também era vítima? Então matei o afilhado dela? O que aquilo tudo significava? Prá onde estávamos indo?

Percebi que as coisas começavam a formar um quebra-cabeças de partes bem grotescas: Cada um fazia o seu papel. Cada um tinha um fantasma a assombrar e um para ser assombrado. O único propósito era matar todos que estavam naquela foto que eu mesmo roubara naquela noite fatídica. Mas se aquilo tudo realmente acontecera, e a loirinha? Ela foi mesmo morta e violentada pelo Dr. Floriano? E seria a frase "você não tem coragem" só uma provocação?

Tentei ligar para o Dr. Floriano. Ninguém atendeu. Nem a recepcionista. Fiquei aflito, não sabia o que fazer. Fiquei com vontade de falar com a moça que eu agredira, mas ela nunca me receberia. Se eu já estava fodido por ter matado 2 pessoas, um mínimo barraco era só o que faltava para me jogar na cadeia. Mas o que mais me assombrava era como seria a noite. Como eu seria assombrado. Será que Gerson e o garotinho viriam atrás de mim? A madrasta do garotinho, na forma da viúva misteriosa, viria até mim? Eu era o último da foto que permanecia vivo.

Perambulei sem destino tentando pensar em uma saída, quando decidi me comunicar com a mulher por carta, sem saber ao certo se ela receberia. Me livrei da fantasia de policial, jogando-a por cima de um muro que dá para a ferrovia da CPTM. Procurei por uma papelaria e redigi uma carta:

ESTOU PASSANDO PELO MESMO QUE VOCÊ. QUERO CONVERSAR E ACHAR UMA SAÍDA. TE ESPERO EM FRENTE À LBV.

Voltei ao bairro e paguei uns trocados para um morador de rua enfiar a carta por baixo da porta e bater. De um bar de esquina, eu observava. Quase triunfei quando vi a mulher recolher a carta. Não havia garantias de que o marido o fizesse. Vi que ela leu e olhou para os dois lados da rua para detectar o autor suspeito. Virei o rosto. Depois que ela entrou, me adiantei para a LBV.

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