Três nós no Barbante

Dr. Floriano, saudações.

Meu nome é Horácio. Sou um empresário e lido com uma pequena cadeia de supermercados do interior paulista. Uma pessoa ligada a mim vem sofrendo terríveis manifestações sobrenaturais e por isso busco seu auxílio.

Recebi seu e-mail através do Peixoto Andrade. Ele me contou do seu extenso conhecimento nas áreas da psiquiatria e também nas do ocultismo.

Contou-me também que o senhor anda recluso e vem rejeitando trabalhos que não estejam relacionados à psiquiatria. No entanto, suplico que pelo menos leia meu e-mail até o final, pois lhe garanto que não encontrará caso paralelo nas áreas ocultas que domina.


Não sou um homem fiel. Nas últimas férias, mandei as crianças e minha esposa para a Disney, a fim de realizar uma promessa antiga. Então aproveitei a oportunidade para relaxar em uma pousada no Amazonas, com duas jovens modelos que conheci em uma festa, a fim de descansar e também de saciar minhas perversões de homem.

A pousada era simples se comparadas às mais famosas que margeiam alguns Igarapés que são afluentes do Rio Negro. Não tinham mais que 4 hóspedes e não se oferecia um grande número de roteiros turísticos. Mas as cabanas eram grandes e pitorescas, todas com teto feito com algum tipo de cipó entrelaçado que lembrava de leve o artesanato feito em vime. Um local perfeito para o repouso, longe de tudo e em meio a mais exuberante natureza do mundo.

Nos hospedamos um uma cabana bem grande que, a pesar de igualmente pitoresca, era dotada de todos os confortos de que prescinde a civilização: cama grande, climatizador, chuveiro elétrico, rede Wi-Fi... só não se dispunha de TV e nem de rádio.

Conseguimos a maior cabana que havia. Como todas as outras, seu telhado formava dois "V" com as 4 partes que cobriam cada lado. Era uma cabana bem grande e tinha aspecto de "loft", praticamente sem cômodos divididos. Devia ter uns dez metros quadrados.

Exatamente no centro do quarto ficava uma cama "king size" e, sobre ela, partia um barbante do teto que terminava numa distância ainda bem alta. Não era possível alcançá-lo nem mesmo se eu ficasse em pé na cama.

Fizemos uma pequena orgia, nós três na mesma noite em que chegamos. Mesmo assim não fizemos nenhuma extravagância, como usar drogas, nem tomamos nada que não conhecêssemos. Pela manhã, foi Beatriz quem primeiro percebeu um detalhe no barbante do teto: surgiu um nó.

Como estávamos exaustos porque não dormimos a noite toda e também porque era relativamente cedo para acordar para quem era recém-chegado de viagem, ficamos um bom tempo ainda na cama esperando a hora de ir tomar o café. Ficamos os três olhando para aquele nó tentando elucubrar como ele foi parar lá. Mas ainda de forma banal e sem alarde de qualquer espécie.

Após o café, fizemos um pouco de turismo para dar tempo de arrumarem o quarto. Telefonei para minha esposa e as crianças e voltamos. Ana Paula foi a primeira que notou que o nó do barbante tinha desaparecido. Achando curioso, comentei com um funcionário da pousada que achava diferente aquela forma que as camareiras usavam para controlar seu serviço. Ele riu, obviamente não sabia do que eu estava falando.

Mas o nó reapareceu novamente de madrugada. E acompanhado de outro, cerca de um palmo abaixo dele. Ficamos assustados e interfonamos a recepção.

"Tem alguém brincando conosco!" - constatei ao funcionário que estava de plantão. Infelizmente, ele não podia deixar a recepção naquela hora (a título de curiosidade: a recepção também era uma cabana). Então fui ter com ele e levei a Beatriz. A conversa tomou um tom jocoso, com insinuações bobas sobre macacos e saguis. Por pouco não armo um barraco. Disposto a não estragar o feriado, decidi voltar com a Beatriz para nossa cabana. Nos assustamos quando vimos a Ana Paula atônita, como se tivesse tomado umas vinte xícaras de café.

Ela estava caçando o que julgava ser um menino que se escondia no escuro, derrubava as coisas e se divertia assustando ela. Teria sido ele o autor dos nós, mas ela mesma não podia confirmar.

Voltei para a recepção para reivindicar uma nova cabana e para reclamar da possível peraltice de algum filho de algum hóspede. Mas dei com os burros n'água... não haviam cabanas disponíveis em condições de nos receber. E também não havia nenhum garoto entre os hóspedes nos registros.

Tentei ajudar na caçada ao menino visto pela Ana Paula, mas nenhum de nós achou nada. Então consegui convencê-las a dormir, mesmo tendo que ouvir os protestos das meninas. Essas mulheres bem nascidas são mesmo difíceis de lidar... Levantei o dia seguinte pior do que teria levantado se tivesse ido trabalhar. Minha vista ainda estava turva, quando tentava distinguir um terceiro nó, a um palmo do segundo...

Ana Paula acordou depois de mim e começou a chorar de soluçar! Beatriz tentava consolar a amiga, mas ia embargando a voz. Mesmo imerso pelo mesmo mistério, achei um exagero. Custou para entender o que as duas choravam...

Ana Paula dizia que tivera um pesadelo muito real. Ela se sentiu imobilizada na cama, enquanto via o menino subir em nossa cama até Beatriz. Ele lhe lambia a face, o braço desnudo e chegou a apalpar o seio que dava para alcançar. Sempre provocativo, o menino ameaçava lhe violar também, mas se continha na última hora, preferindo se divertir aos custos do sofrimento dela.

Disse também que zombava de mim (que estava abraçado à Bia, ressonando). Chegou a urinar na minha cara e, por fim, subiu ao teto se rastejando sobre a parede e o teto, como se fosse uma taturana, até o barbante, quando deu o terceiro nó e desapareceu nele, como se fosse uma espécie de líquido.

Levamos Ana Paula para um banquinho que tinha na recepção e lhe demos água-com-açúcar para que se acalmasse. E aconteceu o que eu temia: nenhuma das duas queria passar uma só noite naquele lugar.

Assim que amanheceu, pegamos o primeiro barco para Manaus e continuamos aquele final de semana lá, num resort comum (que era justamente o que eu não queria).

Não contei às garotas até agora, mas cabe fazer uma citação que talvez o senhor julgue importante: naquela manhã em que Ana Paula perdeu o controle, também vi o famigerado garoto quando voltava para pegar as coisas das meninas na nossa cabana... Ele estava a mexer na bolsa de Beatriz. O fraglei assim que acendi a luz.

A visão era tão ruim de se ver que me fez arrepiar dos pés à cabeça. Era negro e tinha o aspecto de um menino de 10 anos. Parecia que sofria de catarata nos dois olhos e não tinha orelhas, só um furo discreto em cada lado da cabeça. Não tinha lábios e os dentes... eram enormes! Eram distribuídos de forma tão irregular que, mesmo de boca fechada, ainda se via uma grande protuberância saltar para fora. A certa altura em que permaneceu de boca aberta, me pareceu até que possuía mais que uma fileira de dentes em cada maxilar. Mas não posso afirmar com certeza. Mesmo tendo fisionomia de criança, o rosto desfigurado era muito envelhecido e transmitia uma impressão assustadora de um misto de deboche com sofrimento, porque parecia sempre sorrir contra sua vontade. A cabeça era grande para o corpo e passava a impressão de não pertencer a ele. Tinha também uma camada muito rala de cabelo, com alguns tufos aqui e ali.

Usava uma calça surrada e não usava camisa. Tinha chagas horríveis, principalmente nas costas. Pareciam cicatrizes de pontos malfeitos de feridas feitas à faca, queimaduras e marcas de chicote (possivelmente). Mas o mais marcante era a perna...

Só tinha a perna esquerda. E, mesmo assim, não era uma perna comum: era uma perna extremamente forte, como a de um atleta adulto. Não combinava com a constituição raquítica da criatura. Assim como a cabeça, não parecia fazer parte do mesmo corpo.

O senhor deve estar me achando suficientemente louco a esta altura. Quisera estar! Porque a descrição mais próxima da criatura eram as do mito do Saci, transmitidos pelo folclore brasileiro de geração à geração, mas em uma versão terrivelmente pior. E passei a ter ainda mais essa certeza quando vi aquela coisa se afastar da bolsa da Beatriz aos pulos com meu fragla e deixar um rastro sobrenatural, e inexplicável, feito de furos no chão por onde pisava; como se o calcanhar tivesse a forma de um prego.

Ver aquilo se mexer me deixou paralisado. Movia-se de um jeito doente, mas ágil ao mesmo tempo. Emitia espasmos e tossidas pustulentas o tempo todo. A certa altura, pareceu-me que ia dizer alguma coisa, quando soltou um forte chiado e pulou na parede. Foi serpenteando ela como se fosse uma lagarta, com movimentos repugnantes até o teto, desaparecendo em um dos nós do barbante, como se liquefizesse. Parecia que serviam de "portal", ou algo assim.

Tinha deixado para trás uma bagunça enorme. Notei um frasco de creme para as mãos aberto e vazio. Acho que tinha bebido.

Não contei nada a ninguém dessa história, exceto o principal motivo pelo qual te escrevo. Que, por conselho do Peixoto, venho lhe buscar auxílio.

Passada uma semana dessa fatídica viagem, Beatriz demonstra características de gravidez avançada. (bem avançada) Mal pode ficar em pé. Uma semana, doutor!!! UMA SEMANA!! Como isso é possível?!?

Um obstetra veio até o apartamento que aluguei para ela a meu pedido (que ela repudiou). Ele não pôde chegar a um diagnóstico porque a  pobrezinha se recusa terminantemente a fazer o ultrassom, ou mesmo a deixar o apartamento.

Ela tem crises de choro o tempo todo. Diz que o Saci a engravidou. Conta que tem pesadelos em que ele a estupra e a faz beber coisas estranhas quase todas as noites. Tenho medo de que ela comece a contar essas histórias para os outros...

Doutor, sei de sua reclusão. Mas é o único que pode nos ajudar. Não medirei recursos e serei generoso em retribuição.  

Aguardo seu contato.

Horácio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário!

Mais lidos