Diário de João Ribeiro 3 / 12

De súbito dei um pulo e levantei do banco, indignado e assustado ao mesmo tempo, e parti para tirar satisfações. Certamente assustei a bela ao meu lado, pois só me lembro de ter notado ela carregando suas coisas do chão. Eu já estava me acostumando à idéia de ser assombrado, então meu susto em não achar ninguém no lugar onde a "versão mendiga do Dr. Floriano" estava foi bem menor. Porém, levei outro golpe quando achei a placa que ele carregava jazida no banco. Ela de fato existia. Toquei nela e, propositalmente, me cortei com uma farpa. Era real! No entanto, por algum motivo estranho, eu não conseguia ler o que tinha escrito. Minha visão ficava turva e, ao mesmo tempo, era como se eu de repente não soubesse ler. Senti uma forte dor de cabeça quando o celular tocou. Era uma notícia ruim: minha ex-mulher havia falecido.


As coisas ficaram tão confusas que até agora não me lembro como cheguei ao hospital. Perguntei ao irmão dela e ele só me respondeu: "atropelamento". Não chorava, nem tinha a voz embargada. Só parecia manter algum tipo de remorso oculto muito profundo. Nem olhou na minha cara quando respondeu.

Chorei prá caramba naquela tarde. E, embora nosso relacionamento nunca tivesse sido muito bom, me sentia sem chão. Lembro-me que fiz um pouco de sala para a mãe dela, pois era a única que ainda nutria algum carinho por mim, mas não esperei o resto dos parentes chegarem. Me sentia exausto e dormir era a única coisa que pensava em fazer.

Aceitei o convite de meu melhor amigo, Gerson, para dormir em seu apartamento. Ele também conhecia minha ex, nos formamos todos juntos na mesma faculdade e tínhamos uma turma bem unida.

Faltava luz devido a um black-out na vizinhança e ficamos conversando até umas 20:30h quando decidi dormir. O prédio ficava na Av. Nove de Julho e durante o tempo todo o barulho da rua se fazia presente. Eu tentava dormir quando, de súbito, todas as sirenes, todos os motores e todo o alvoroço da rua parou. De uma só vez. De forma totalmente sobrenatural e presente. Então, ouvi um baque no quarto do meu amigo. Achei que ele estivesse passando mal porque tinha bebido um pouco. Me apressei a seu quarto tentando iluminar o caminho com meu celular e não achei meu amigo. Nem a cama estava desfeita. Mas, em cima dela jazia o quê provocara o baque e me fez arrepiar dos pés aos cabelos: aquela placa que eu achara no ônibus que fora usada como "estandarte" do Dr. Floriano. E, agora, eu podia ler sua frase enigmática, até mesmo no escuro! Até mesmo de longe: "Você não tem coragem".

E então comecei a ouvir um gemido feminino bem alto e sensual (não fosse pela altura e pela total falta de noção devido a hora) vindo do meu quarto. Corri para ver e, paralisado, vi ali a loira do ônibus e o Dr. Floriano! Ambos transavam em minha cama, assumindo poses e formas que nenhum humano poderia assumir. Dobrando suas juntas e ancas, como se fossem dobradiças que pudessem girar para todos os lados. Mesmo assim, a loira apresentava um rosto muito atraente e seu corpo muito mais formoso que antes. Fazia gestos com os olhos para eu participar da cópula e, de repente, ouvi seu gemido se tornar tão agudo que virou um guincho muito horrível e indescritível. E o que antes parecia feições de prazer, se transformou em um suplico de socorro, enquanto via o Dr. Floriano assumir uma forma grotesca como se tornasse um porco muito grande, mas sem perder o aspecto humano. Então, senti um fedor muito grande de fezes. Tão forte que me causou náuseas e me fez correr para o banheiro. De dentro podia ouvir aquele guincho torturante e suplicante e a cama a ranger, como se várias pessoas pulassem em cima dela sem qualquer ritmo, cada uma pulando ao seu tempo.

Quando me virei para o vaso para vomitar levei um susto muito grande que me fez cair sentado no chão e esquecer totalmente as náuseas: me deparei comigo mesmo sentado em cima do vaso de cócoras como que me protegendo. Mas parecia como uma versão congelada de terror: tinha um buraco de um escuro muito profundo no lugar dos olhos, ao passo que lágrimas preto cor de petróleo escorriam por esses orifícios e sujavam parte das bochechas.

Me recompus como pude e percebi estar de volta a meu banheiro, mas na noite anterior. E, aparentemente, via as coisas por outro prisma.

Minha percepção aumentou muito e comecei a ver e a sentir as coisas com um nível de lucidez altíssimo impossível para qualquer homem são sentir. Senti que podia observar o que se passava nos outros cômodos da casa só em pensar neles. Sem sair do lugar. Parecia que tudo acontecia de forma muito lenta. Então fui tomado pelo mesmo pavor da noite anterior e decidi ver o que se passava do outro lado da porta, quando torcia para o espectro do menino não abrir a porta. E tentei gritar em vão quando vi que não era o menino que tentara abrir a maçaneta, nem espiar pela fresta, fazendo-a assumir dimensões inverossímeis. Era eu mesmo! Ou na verdade, uma outra versão de mim. Muito grotesca e maligna. Mas, diferente do Dr. Floriano que ainda estuprava sem piedade a pobre loira, eu era raquítico e informe. Mal lembrava uma pessoa: haviam pedaços do corpo que pareciam que não estavam preenchidas por nenhum tipo de tecido musculoso, mas que não estavam frouxas. Em vez disso permaneciam bem justas aos ossos. Ao mesmo tempo, haviam pedaços de pele sobrando como se fossem restos mal-formados de outro animal, fundidas no mesmo corpo. O rosto estava deformado do lado esquerdo e era parcialmente fundido ao peito e os olhos eram terrivelmente semelhantes ao menino que me assombrara na noite anterior. Não tinha mãos. Por isso não conseguia virar a maçaneta. Pareciam joelhos.

Essa cena me fez dar um pulo e me afastar imediatamente da porta. Fui até o Box, passando pela pia onde tinha deixado a torneira aberta naquela noite. Ela permanecia aberta, mas não derramava nenhum líquido. Ao entrar no Box fui surpreendido mais uma vez: ali, o tempo todo, durante meu refúgio da noite passada - pelo menos nessa visão grotesca da realidade - estavam no canto uma mulher muito magra da minha altura, vestindo um vestido de seda rasgado e, agarrado a suas pernas, o menino que me assombrara na outra noite.

O menino continuava muito assustador como naquela noite, mas estava se protegendo na "mãe". Eu não podia ver os olhos de ambos, pareciam turvos (como pareciam os escritos daquela placa no ônibus, mais cedo). Mesmo assim, a mãe parecia que fora muito bonita em vida. Tinha longos cabelos bem longos e bem pretos até a cintura.

Notei que a cada batida fraca da maçaneta e a cada vez que o guincho se fazia mais alto, o menino demonstrava mais medo e buscava mais proteção. Comecei a reparar nos traços da mãe e vi que os braços estavam desnudos. Tinham marcas de queimaduras e eram inteiramente escritos a mão a frase "Você não tem coragem" estranhamente escrita de trás para frente, como se fosse preparada para ser exibida a um espelho. Deduzi ser ela destra, porque o braço esquerdo tinha uma caligrafia bem mais regular, enquanto o direito parecia torto.

Em momento algum ela me olhou nos olhos, ou dirigiu o rosto para mim. Também não demonstrou instinto materno pelo filho. Parecia que nossa presença era totalmente irrelevante para ela, mas guardava um sorriso enigmático bem discreto. Se limitou a colocar a mão dentro do roupão e retirar de dentro uma faca muito grande que parecia de cozinha, exceto que o cabo era curto e o fio muito grande. Pareceria uma espada, não fosse pelo formato e o cabo tão medíocre e barato. Então, estendeu-a para mim, oferecendo-a pelo cabo, mas mantendo-a em pé, sem virar o rosto. Era para eu usar. Eu não queria aceitar, mas o temor em imaginar como aquela figura encararia uma rejeição me dava calafrios...

Quando peguei a faca notei no rosto do menino um sorriso desproporcional brotar em seu rosto e a lhe deformar. Além de medonho, era nitidamente um sorriso de malícia que revelara sua dissimulação a cerca da postura que assumira a pouco. Nesse momento, ouvi aquele grito medonho de homem adulto ao lado da porta e senti que ele vinha do meu eu fantasmagórico que lutava para girar a maçaneta sem as mãos. 

O guincho de repente parou e parei de sentir as coisas. O banheiro ainda estava lúgubre e meu outro eu sem-olhos-e-chorando-sobre-o-vaso começou a ter pequenos sinais de que ia se mexer. Como eu logo ouvi o barulho das panelas na cozinha e deduzi que o caminho estava livre, decidi sair do banheiro antes que aquilo (digo, eu) fosse fazer algo bizarro e horripilante. Saí do banheiro e, para meu espanto, entrara de volta no quarto em que fui me deitar, no apartamento do meu amigo. Corri para minha cama e me deitei muito tonto e com o coração disparado. Me protegi nas cobertas como uma criança. Me sentia arder em febre.

E amanhecia. Aos poucos o som da rua foi voltando e tudo ia parecendo mais natural. Eu já ouvia da cozinha o barulho de meu amigo preparando o café. Tudo parecia normal, exceto por um detalhe: eu ainda carregava aquela faca grande em uma das mãos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário!

Mais lidos