Diário de João Ribeiro 2 / 12

Compareci ao consultório do Dr. Floriano na Av. Angélica. Ele é psiquiatra. Não precisei marcar hora, porque ele é um amigo de um conhecido meu. Insisti que o caso era grave e ele me recebeu.

A essa hora do dia meu medo deu lugar a uma postura muito mais "racional" da coisa e meu maior temor era estar acometido de algum problema mental grave (mesmo tendo visto o cobertor no chão, minha carteira revirada e as pegadinhas feitas de caldo de feijão no teto da minha cozinha).


Depois de um exame físico, na maior parte da consulta fui eu quem falou. Ele me ouvia e me fazia algumas perguntas e me encarava muito pouco. Achei estranho que muitas dessas perguntas eram pouco centradas da visão que eu tivera e muito mais focadas nos meus vínculos afetivos da minha época de faculdade. Ele pouco deu importância a todos os aspectos bizarros da aparição e quis saber alguns detalhes a cerca de como conheci minha ex-esposa. Se namoramos durante muito tempo, essas coisas. Eu não sou especialista, sei que existem detalhes muito sutis na psique humana para alguém leigo como eu, mas eu imaginava que essas perguntas deveriam ser mais investigativas a cerca da figura que eu vi e não a detalhes que pouco importavam. Ele sequer me perguntou se eu tomava algum medicamento, se estava alcoolizado. Não fossem os diplomas pendurados na parede, a recomendação de meu amigo, e a idade avançada, eu desconfiaria de sua qualificação. Embora, como eu disse, não sou especialista e nunca procurei um profissional desse ramo.

Lembro o leitor de que todos esses julgamentos foram feitos na época. Quando eu não tinha nenhum vislumbre do que ocorria (e ainda acho que não tenho, mas sei mais agora do que na época). E disponho essas palavras da maneira em que eu pensava na ocasião de cada um dos acontecimentos, de forma a defender meus julgamentos e minhas ações, ao passo que revelo a natureza de meus algozes.

Enfim, saí do consultório sem saber muita coisa, mas um pouco mais aliviado por ter falado com alguém a respeito. Peguei um ônibus a caminho do trabalho (queria falar com o RH para tirar uns dias de folga. Agora eu estava na fase de achar que tudo era estresse). Estava pensando muito mais na consulta inútil que tivera do que com o acontecimento sinistro e já até esquecera o sono, quando uma linda loirinha atravessa a catraca. Deveriam ser umas 13h, o ônibus estava vazio. Ela parecia um anjo: a pele clarinha e macia, os olhos azuis, longos fios dourados e o corpinho bem torneado, mas não chamativo. As unhas de princesa... Compridas, mas não muito, pintadas de uma cor muito clara que não me vem a memória agora. Tinha no rostinho aquele aspecto desamparado... Irresistível! Sem nenhum motivo aparente ela se senta a meu lado. No mesmo instante, seu perfume invade minhas narinas e me faz sonhar. Ela carregava alguns materiais escolares. Devia ser uma das alunas do Mackenzie, pensei.

Ela então permaneceu ali, olhando a rua que passava a nosso redor. Estávamos sentados de frente para um anteparo espelhado, típico dos ônibus coletivos da cidade. Para não assustá-la, eu a olhava pelo reflexo do anteparo. Que visão! Não demorou para eu começar a ter fantasias mais profundas com aquela ninfa... Cada linha do rosto, cada contorno do corpo, os seios pareciam deliciosamente perigosos e proibidos... Então notei algo a mais no reflexo que me deixou assustado: era o Dr. Floriano! Ele estava parado lá no fundo do ônibus com os olhos fundos e tristes, quase moribundo. Parecia um mendigo. Estava em pé olhando para mim através do reflexo. Parecia desapontado. Tive a impressão de que ele conhecia os meus desejos mais íntimos. Não olhei para trás, ainda com a esperança de fingir que não era comigo. Então, ele balançou a cabeça bem devagar para os lados em sinal de desapontamento, ainda com aquela expressão de tristeza profunda e, de repente, vejo ele levantar uma placa de madeira como daquelas que anunciam a compra e venda de ouro no centro da cidade. Ele a levanta ao lado da cabeça para que eu possa vê-la. Devia estar escrita ao contrário, porque eu podia ler perfeitamente do reflexo. E, pela primeira vez, pude ler em letras garrafais a frase que tem me acompanhado nesses dias de terror:

"VOCÊ NÃO TEM CORAGEM" 

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