Diário de João Ribeiro 6 / 12

Tentei me aproximar do quadro até tocá-lo. Mas a cada passo que eu dava ele parecia que recuava. Não era para eu encostar nele.

Então comecei a ouvir sons de carros. E de pessoas, e de progresso. E, aos poucos, a vida voltava lá fora. E nossos corações se encheram de alegria quando, de forma repentina (como se sempre estivéssemos ali) percebemos estar na cozinha de Gerson.

Gerson me encarou muito profundamente. Parecia que buscava alguma explicação lógica para aquilo tudo. Estava visivelmente aliviado, tanto que se pôs a gargalhar e acendeu um cigarro. Mas eu não. Eu sabia que aquilo não ia parar e ficaria cada vez pior.

Ouvi um som de talher despencando de alguma prateleira alta vinda do quarto. Me lembrei daquela placa que caíra na cama misteriosamente na outra noite. Corri para o quarto e achei aquela faca horrorosa caída na cama. Gerson demorou um século para vir atrás de mim. Quando viu a faca começou a bater no batente das portas e a gritar palavrões às paredes, transtornado. Mais tarde, derrubou um copo no chão tamanho era seu estado de nervos.


Após dormir um pouco e almoçar, achei melhor mudar o rumo das "investigações" e tentar decifrar aquele pesadelo. E decidi revisitar o Dr. Floriano. Não havia nada que aquele homem dissesse que traria um pouco de paz a minha alma, mas queria saber o porquê ele aparecera daquela forma grotesca na primeira noite da morte de minha ex. Eu teria ido atrás da loira do ônibus também, se tivesse alguma certeza sobre como encontrá-la.

É importante o leitor perceber que, embora essa decisão não fizesse nenhum sentido (não dá para você invadir o consultório de alguém e perguntar o porquê você a viu em seu pesadelo), estávamos muito perturbados. Não dá para você ignorar um caso bizarro desses quando duas pessoas compartilham o mesmo pesadelo. A faca que, antes era motivo de especulação, passou a se tornar uma prova material de que aquilo não era só um pesadelo. (ou que talvez os dois estivessem sendo drogados com algo muito forte)

Gerson estava muito abatido. Ele preferiu passar o resto da tarde em algum lugar público, pois deduziu que as assombrações "tinham medo" do alvoroço. Afinal de contas, quem já ouviu falar de um fenômeno paranormal em plena luz do dia em meio a uma multidão de pessoas? E assim, partiu para a Rua 25 de Março.

Gerson desenvolveu um medo muito grande da viúva misteriosa. Nas poucas vezes em que falamos a respeito ele procurava formas mirabolantes de se referir a ela. Chamava-a de "coisa" de "aquilo", ou virava os olhos para um lado e apontava com o dedo para trás do ombro sem se especificar sobre ela. Talvez, do ângulo em que ele estava quando ela surgiu do escuro, tenha visto algo que eu não vi. Penso que fiz bem quando fechei os olhos quando ela colou os seus nos meus.

Enquanto Gerson preferiu ir à 25 de Março, eu, por outro lado, coloquei meu plano em ação. Atravessei o Terminal Bandeira e a Rua Barão de Itapetininga até a Praça da República para pegar um ônibus que subisse a Rua da Consolação e chegar até a Av. Angélica, onde ficava o consultório do Dr. Floriano. Esperei pegar a mesma linha que viajara naquela tarde, com a esperança de que isso tornasse mais provável trombar novamente com aquela bela jovem daquela tarde e que povoava o pesadelo mais tarde. Mas isso não aconteceu. Em vez disso vim acompanhado de um casal daqueles em que a garota é muito mais bonita que o cara. Ele parecia ser bem ciumento, tanto que, quando os olhei, fez uma carranca-de-macho-alfa. A situação me divertiu e me fez esquecer um pouco dos meus problemas.

Fiquei na recepção um tempão esperando. Quando uma morena se debruçou sobre a recepcionista e pareceu tentar convencer a deixá-la passar sem ter hora marcada. Após a concessão, às pressas, a mulher se vira e cruza meu olhar atônito e me faz perder a cabeça:

- É ELA! É ELA!!

Diante de mim vejo ela: a viúva misteriosa!! Vivinha-Da-Silva! Os olhos muito vivos, irrigados de sangue, a pele muito morena e muito macia. Os lábios muito quentes e os cabelos presos. Perco a cabeça e armo um circo! Parto para cima daquela mulher e a derrubo no chão!! Estou disposto a matá-la de verdade!! Então sinto uma pancada na cabeça e só acordo no hospital. Um sujeito negro, de traços muito fortes vem me socorrer:

- Moço, você está no Hospital Santa Catarina. Tem muita sorte. A moça que o senhor agrediu decidiu não prestar queixa. Você gostaria de ligar para algum parente ou familiar?

Minha cabeça rodava. Provavelmente algum segurança me aplicara algum golpe para conter minha loucura. Naquela altura dos acontecimentos eu não tinha certeza de mais nada. Quando meu celular toca: é Gerson. Está apavorado. Aos prantos ele me conta o motivo de sua aflição:

- ESTÁ MORTA, CARA!
- Calma, não grita! Quem está morta?
- DÉBORA ESTÁ MORTA!

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