Diário de João Ribeiro 1 / 12

São Paulo, 11 de Abril de 2011

Começo a relatar aqui minha história, enquanto aguardo por meu terrível destino, na esperança de deixar registrado o que os meus algozes são capazes de fazer. Minhas investigações só conseguiram mostrar que são homens de poder contra os quais nada posso fazer.

Declaro que eu, João Ribeiro dos Santos, 42 anos, natural de Presidente Prudente, São Paulo, estou em plenas faculdades mentais, e livre de qualquer tóxico ou entorpecente quando narro estas palavras.

Estou em meu pequeno apartamento no bairro de Santa Cecília, São Paulo. Já está escuro lá fora, mas ainda não são 22:15h. Me espremo como posso em minha pequena janela de angústia e pavor enquanto aguardo os momentos de terror que me afligem todas as noites sempre no mesmo horário, mas que prometem ser as últimas da minha vida.

Todas as luzes estão devidamente acesas a minha volta. E elas tem de estar: desde que minha aflição começou elas sempre surgiram das sombras mais inimagináveis! Como se fossem portais para o inominável. E sempre nesse mesmo horário.


Lembro-me muito bem como começou. E não começou de forma gradativa, mas grotesca e apavorante. Sem aviso: certa noite quando fui à cozinha beber água e esqueci de manter as luzes acesas atrás de mim. Quando me virei para voltar fui surpreendido por uma criança de pouco mais de 4 anos parada em frente ao corredor, iluminada parcialmente pela luz que vinha da rua, através dos vitrôs. Estava nua, mas com um cobertor cobrindo as costas.

Nunca vou me esquecer de sua aparência. Tinha os olhos horrendos, completamente negros, como se a retina tivesse sido arrombada por dentro, de modo que dominava todo o globo ocular. Mas dava para perceber que tinha algo ali e não era um buraco, pela linha branca muito tênue que denunciava algum volume.

Aquele pequeno nefasto permanecia ali parado, tapando meu caminho, dizendo frases de uma língua estrangeira que eu nunca ouvira antes, enquanto fazia gestos com os dedos no ar, como se desenhasse um quadrado.

Fiquei apavorado, mas não conseguia dizer nada. Um sentimento algorento tomou conta de mim e, de repente, me senti em luto por alguém que morreu. Uma tristeza e um medo absurdo me dominou e me senti o menor dos homens, como se o mundo todo fosse me esmagar naquele instante.

Reuni todas as minhas forças e decidi correr para o banheiro atrás de mim. Me virei e senti que aquilo voou sobre mim e não me alcançou por centímetros. Me tranquei e acendi a luz. Não sei bem por que, abri a torneira da pia e deixei aberta. Subi no vaso e decidi dormir ali mesmo até o sol raiar. Tentei em vão respirar baixinho e encolhi as duas pernas sobre o vazo, quase em posição fetal, tentando afastar aquela monstruosidade da cabeça e, aos poucos, reorganizar as idéias. Pelos vãos da porta, eu podia ver a sombra daquele vulto andar para lá e para cá rodeando a porta, como se estudasse como entrar. E, atônito, notava a fechadura se mexer às vezes. Eu trancara a porta?! Não me lembrava! E por algum motivo eu mantinha a idéia de que a coisa iria se convencer da minha ausência e ir embora. Então, meu menor movimento provaria o contrário.

Não sabia porquê a coisa não conseguia abrir a maçaneta (mais tarde vim a saber da forma mais horrível possível). Parecia até que não sabia move-la. Eram movimentos frágeis e débeis, quase tapas fracos, como se aquilo tivesse patas no lugar das mãos.  Então meu coração quase saltou da boca quando vi uma cena completamente impossível de acontecer: através do vão da porta ao lado das dobradiças eu vi, inexplicavelmente, um daqueles olhos horrendos tão colados à fresta que penetraram parcialmente no vão, contrariando todas as leis da física! Eram olhos ferozes e temi por um instante serem capazes de ler minha mente e que, de alguma forma, isso o fizesse ser capaz de aprender a como abrir a porta.

Temi enlouquecer de pavor com aquela cena. Então ouvi um choro muito alto de homem adulto que fez minha alma gelar de pavor e senti que aquilo fugiu em disparada, fazendo um barulhão de panelas em seguida. Olhei para o vitrô do banheiro: o dia já tinha amanhecido. Fiquei lá ainda uns 15 minutos e perdi a hora do trabalho. Fechei a torneira e saí do banheiro aos poucos com o coração na boca ainda. A cozinha estava toda destruída: todos os talheres estavam esparramados, as gavetas - até as mais altas - estavam abertas. E me impressionei porque, pelo barulho, tudo tinha acontecido de uma vez! Uma panela de feijão amanhecido estava esparramada no chão. E pegadinhas de caldo marcavam a fuga da besta: rodeavam o chão, subiam a parede, o teto e terminavam no batente da porta, onde fora surpreendido no começo da noite. Achei o cobertor que aquilo trazia nas costas jazido no chão. E uma surpresa desagradável: minha carteira toda revirada. Peguei-a e procurei por algo que faltava. Então, notei pela ausência de uma foto que eu sempre carregava.

Em seguida, fiz o que qualquer pessoa racional faria: procurei ajuda especializada - um médico.

Decidi que todas aquelas coisas eram frutos de minha imaginação e que aqueles momentos por que passei eram um apagão da minha mente enquanto o surto se decorria na minha cozinha. Decidi que as pegadas (até as do teto) foram deixadas por algum gato, atraído pelo cheiro do feijão esparramado.



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