A Oitava Nota


Teixeira estava apreensivo.

Queria conquistar o coração de Simone de qualquer jeito. Mas ela, que era moça fina e parecia feita para estrelar comercial de margarina, só tinha olhos para o Gonçalves, tocador de violão, muito bom galanteador e que estava começando a fazer algum sucesso com seu sertanejo universitário na cidade.

Teixeira tocava flauta doce. Nobre instrumento, mas que não costuma chamar a atenção do público hoje em dia, principalmente do feminino.

Ninguém sabe o que levou o desajeitado Teixeira a se inscrever pata tocar na tradicional festa do morango de Sobral. Penso que foi um desejo intimo de fazer afronta a Gonçalves e provar à Simone que ele podia ser melhor do que ele em alguma coisa. Fato é que esta é mais uma daquelas histórias que começam erradas e terminam ainda mais erradas pelo mesmo motivo: o coração de uma mulher que não dá a mínima para você...

Não dá para saber bem como aconteceu, mas Teixeira teve acesso aos estranhos estudos que o pobre Josué fazia. Para resumir, Josué era um açougueiro muito querido da capital que faleceu de uma estranha doença, depois que passou a estudar os misteriosos rabiscos que eram pendurados na Rua Dr. Gabriel Pizza pelos mendigos da Capital. Algo o levou a acreditar que existia uma mensagem cifrada na estranha matemática espalhada a esmo pelos fragmentos. Terminou louco e com uma enorme bolha que cobriu seu rosto todo e que o impedia de se alimentar e de respirar.


Teixeira leu os estudos incompletos de Josué e passou a se perguntar se não eram mesmo mais que meros delírios, como se faziam acreditar. Desde então, começou a ter um sonho estranho.

Toda a noite se via em um enorme corredor feito de paredes muito velhas e descascadas. Ele acompanhava o corredor até uma luz que tinha a presença de um vulto tocando uma canção com sua flauta doce. Porém, ele sempre acordava antes de chegar ao flautista.

Usando uma lógica que só tem sentido na cabeça de um homem apaixonado por uma garota que não quer saber dele, imaginou que aquela canção iria tocar o coração da moça.

Mas tinha um porém: acordado, não podia se lembrar da canção...

Foi a partir dos estudos de Josué que aprendeu a fazer a droga Pronofol em casa. E, com ela, pôde controlar aos poucos a duração do sonho. E, a cada noite, conseguia chegar mais perto do flautista.

Teixeira evoluiu de tal maneira que percebeu que a canção que era tocada era “The House of Rising Sun“. A descoberta lhe soou decepcionante num primeiro momento até que descobriu uma diferença crucial que tornava aquela versão do sonho tão especial: havia um conjunto de harmonias estranhas que não fazia parte da versão original.

Teixeira tentou exaustivamente reproduzir aqueles versos harmônicos que faziam de uma canção tão trivial uma música tão viva e inspiradora. Então, decidiu montar um planejamento para chegar até o final do túnel e inquirir o flautista sobre qual era o segredo daquela versão tão mágica de uma música tão conhecida. E preparou a noite para que aproveitasse ao máximo o sonho. Acordado, aumentou aos poucos as doses de Pronofol e, durante o sonho, imaginava que tinha uma faca com que podia fazer marcas nas paredes para saber por onde tinha passado e não ter que recomeçar o corredor todo a cada sonho.

A cada noite, o progresso de Teixeira melhorava. Ele já conseguia recomeçar o sonho de onde tinha parado sem o auxílio da faca, ou de coisa nenhuma. Podia distinguir nitidamente a luz que agora se transformava em uma clareira no final do corredor de onde se podia ver o flautista sentado em um belo jardim com muito sol e muita vida!

Às vezes me pergunto se a comunidade científica desse atenção a esse tipo de conhecimento também não se conseguiria reduzir esses acidentes infelizes, como o do pobre Teixeira (e do próprio Josué antes dele). É espantoso o quão longe ele chegou! Mas a quê custo... Na vida real, ele se tornava um trapo... Cada vez passando mais tempo sonhando que acordado... E, bem antes de se aproximar do seu destino, se via em pé, nú ou de pijamas, andando dormindo no meio da casa. Em certo episódio, acordou enquanto terminava de dar a primeira volta na chave-tetra da porta da casa...

Finalmente, Teixeira chegou ao final do corredor. Era mesmo um bosque muito ensolarado e bonito. Havia, no entanto, muros bem altos (igualmente velhos e descascados) contornando o bosque. Mesmo assim, o sol era abundante e o aspecto bem alegre: com flores e plantas de diversos tipos e uma laranjeira. No centro, havia um vaso antigo quebrado improvisado como banquinho. Sentado nele, falava o sorridente flautista:

- Não pensei que você fosse chegar tão cedo! Na verdade, nunca pensei que você fosse chegar!

Teixeira não chegou a dizer nada. Tinha tomado tanto Pronofol que até inibições tinha nos sonhos. Sentia-se tímido. Diante da parvoíce do visitante, o flautista se pôs a tocar novamente aquela mesma canção, que falava de pessoas que tinham se arruinado em uma casa de vícios.

Quando chegou ao refrão, entoou aquela combinação alucinógena de sons. E o coração de Teixeira pareceu que ia explodir dentro do peito...

Era simplesmente o som mais maravilhoso do mundo! Era como se o primeiro sorriso de um bebê pudesse ser musicado. Ou como a sensação vitória em realizar um resgate impossível pudesse ser resumida em uma nota musical. E a natureza em volta mudava: as plantas nasciam em lugares improváveis. As árvores ficavam mais fortes e úmidas e uma miríade de cores quentes e oníricas se misturava à luz do sol. E Teixeira, com lágrimas nos olhos, percebeu: era apenas uma única nota que fazia a diferença!

O flautista parou imediatamente e concordou vitorioso: “sim, é apenas uma nota!“

E de fato era uma nota. Havia uma nota que não fazia parte da escala musical humana encrostada entre “si“ e “dó“ da próxima oitava. E não era nenhum sustenido ou acidente que o fosse. Mas um fenômeno visivelmente novo!

Fazia parte do Universo que existe entre todas as coisas. E, musicalmente, era como se existisse uma música dentro de outra música.

O flautista interrompeu o espanto: “você quer aprender como se faz?“

Ele mostrou a flauta. Ela tinha um furo adicional, abaixo do furo solitário que existe para se colocar o polegar e se manipular a oitava. Era um furo estranho, feito com cinco ou seis traços entrepassados. Na verdade, bem fáceis de desenhar.

- Tente!

Teixeira pegou a flauta e repetiu a mesma canção conhecida. Quando chegou ao conhecido refrão, repetiu a mesma nota. E novamente seu coração se encheu de alegria ao ouvir a melodia mais bonita por que um coração já bateu. Quando terminou, viu o flautista sorridente aplaudindo e sentiu que ia acordar. Então, passou o dedo no furo extra o mais tempo que pôde para decorar como eram aqueles traços. E olhou para eles um bom tempo... Até que acordou.

Despertou na sua cama quase às 16 horas do outro dia. Tinha dormido um dia inteiro e avançado metade do seguinte. Estava imundo! O barbear atrasado fazia dias. Mesmo assim, a primeira coisa que fez foi partir em disparada para a escrivaninha e pegar papel e lápis para tentar reproduzir a figura que formava o furo extra da flauta.

Mesmo tomado de obsessão, Teixeira se arrumou naquela noite. Foi impecável para o festival. Estava bem mais magro e pálido. Tinha sumido e nem ao emprego de contador tinha comparecido fazia quase uma semana. Quando apareceu no terreno onde eram montadas as barracas e o palco do festival, até as pessoas que não gostavam dele o viram-no com certa admiração e se aproximaram para cumprimenta-lo.

Há certa altura, Simone já namorava Gonçalves. Ambos chegaram juntos no mesmo carro e vinham de mãos dadas cumprimentar um grupo que recepcionava o sumido Teixeira. Esse é o típico cenário que amedrontaria um tímido apaixonado que está acostumado a servir de capacho para o amor platônico. Mas não esta noite! Teixeira estava simplesmente louco pela melodia descoberta. Simplesmente não pensava em outra coisa! Estava doente! Simone não tinha mais importância, nada mais tinha!

A noite estava ótima! As pessoas felizes! Comia-se e bebia-se a valer! Fazia um friozinho aconchegante que, somada à decoração feita com luzinhas de Natal que não piscavam, dava um ar romântico à coisa toda. Naquela noite, só ficava sozinho quem era muito feio ou tinha ficado em casa!

Gonçalves arrasou com seu sertanejo universitário! Tocou todas as musicas das paradas e avançou um pouco seu horário. Mas ninguém reclamou! Embalou em seguida um forró igualmente universitário. Mesmo sem sanfona, conseguiu agradar todo mundo com seu violão manhoso e cheio de carisma!

Ironicamente, a organização colocou Teixeira para tocar em seguida. Teria sido difícil até para o rei Roberto Carlos subir no palco depois daquilo! Ele não pareceu nervoso. Escolheu sua improvável “The House of Rising Sun“ em versão instrumental para rivalizar com tanta alegria fornecida por seu oponente. O anfitrião da festa teve dificuldade em anunciar o nome da música corretamente. Então, Teixeira subiu ao palco, pegou sua flauta modificada e se pôs a tocar.

A multidão parecia desinteressada e impaciente quando ouvia aquele ser mirrado tocando aquele instrumento sutil e desvalorizado naquela hora, com aquela música lenta e triste. Até que Teixeira finalmente chegou ao refrão...

Quando tocou a nota ensinada pelo flautista do sonho, em vez daquele coro de anjos acariciar os ouvidos e a alma daquela gente bêbada que assistia ao show, uma trombeta terrível e assustadora pareceu ecoar de dentro do instrumento do rapaz. Era um som horrendo e tenebroso que fez gelar a espinha do mais pomposo espectador da plateia.

E Teixeira foi tomado pelo pavor. E não apenas pelo som furioso que saia de uma flauta tão pequena, mas porque não conseguia parar de assoprar. Ficou pelo menos uns três minutos entoando aquela nota abominável sem poder largar a flauta, ou tomar mais ar.

E teria continuado a soprar, mesmo sem ter uma única grama de ar nos pulmões, a não ser alguém notar as pessoas das primeiras fileiras começarem a agir de forma grotesca ao mutilar a si próprias: expondo os braços em carne-viva com as próprias mãos, perfurando os ouvidos e olhos com palitos de maça-de-amor, ou simplesmente agindo como marionetes (se mexendo de forma estranha e com velocidade incompatível a de um ser humano normal).

E só parou assim: quando alguém sacou uma pistola e espalhou os miolos do pobre Teixeira pelo palco...

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