O Placebo

Era pontualmente 10 horas quando uma senhora de meia-idade entrava com o filho de 15 anos no consultório da "Clínica de Estudos Avançados da Alma", um trabalho sócio experimental da Universidade do Sobral.

- Vejamos... e o que a senhora tem?
- Eu nada, doutor. É meu filho.
- E o que ele tem?
- Está apático, doutor. Só come e dorme o dia inteiro. Ele não joga bola como os outros garotos e nem sai "de balada" à noite. - respondeu conotando o termo "de balada", ressaltando a estranheza de ser usado por alguém de sua idade.

O médico parecia apático e desinteressado. Já sabia o diagnóstico no momento em que pôs os olhos nos dois entrando no consultório, mas não queria parecer pragmático em dar um diagnóstico sem realizar um exame antes - E também para fazer a mulher acreditar que o tempo dela não estava sendo desperdiçado.

Ele olhou para a cara sonolenta do rapaz que aparentava ter ainda mais sono. Decidiu teatralizar um pouco porque, no fundo, também achava que o rótulo da sua especialidade soava um pouco apelativo e bizarro. Era como se tentasse provar para os pacientes que, a pesar do que parecia, também era médico. Então pegou um abaixador de língua...

- Diga "aaaaaahhh".


O garoto consentiu e abriu a boca, mas o som não parecia com nenhum "ahhh" que se prese. Então, o médico pegou o estetoscópio e pediu que o garoto levantasse a camisa e respirasse fundo. Resmungou para si mesmo algum desaforo inaudível enquanto ficava olhando para o relógio, aguardando um tempo digno para terminar a consulta. Mal notou o compasso das batidas cardíacas. Pudera! Era tudo teatro mesmo...

- Como é o pai? - perguntou já sabendo a resposta.
- Ah, ele é... é...

(É.........)

Surpresa!! - Não se lembrava... Como podia esquecer uma coisa dessas??? O homem honrado e trabalhador com quem se casara há 25 anos! Honrado... (bom, ... que lhe batia de vez enquando, mas que era honrado!...) Trabalhador e... (que bebia uma cervejinha de vez enquando e perdia a linha às vezes... mas que ia à Igreja aos domingos e nunca deixava nada faltar em casa!)

(Honrado....)

Ficou preocupada de não se lembrar e mudou de assunto. Finamente, pronunciou as palavras tão esperadas pelo médico:

- O que ele tem, doutor?

Quase aliviado por terminar aquela consulta eterna, o médico levantou suas sobrancelhas grossas e respondeu:

- Eu filho está ôco por dentro...
- Como assim????????? - a resposta fez a labirintite da mulher gritar "presente!"
- Seu filho está Ô-CO! - respondeu num tom de voz mais alto e pausado. Em algum ponto entre a didática e o "chamar os outros de burro".

Um silêncio sepulcral tomou o rosto da mãe. Desta vez, em algum ponto entre o colapso e o estado-de-choque.

- O filho da senhora é uma casca sem alma. Ele é uma projeção materializada do que a senhora pensa que um filho adolescente deve ser.

E prosseguiu:

- Podemos dizer que ele nunca nasceu e as coisas sobre a sua história foram inventadas pela senhora. Até mesmo a própria vida da senhora pode ter alguns trechos projetados. Normalmente de alguma novela que viu, ou da vida de alguém que conheça.

Ela ainda não conseguia sair daquele estado de paralisia bovina... Era muito provável que parte das palavras usadas pelo médico chegassem a ser desconhecidas, embora fossem constantes comuns usadas na Língua Portuguesa e dominadas por qualquer criança de nove anos.

- É bem mais comum do que parece, permita-me demonstrar: está vendo aqui, a fonte? - apontou para as têmporas - O seu filho não as tem! Isso porque ele não existe! Pessoas leigas em anatomia negligenciam partes do corpo que projetam e que não prestam atenção. Olhe aqui os mamilos: parecem meras manchas. Nem textura de mamilos de verdade eles têm.

A pobre mulher começava a gaguejar alguma coisa que não tinha sentido.

- Olhe aqui os cotovelos: estes aqui não são cotovelos práticos. Existem movimentos que ele não faz. Isso porque a senhora não tem ideia de como um cotovelo funciona. Agora, em compensação, observe isto...

O doutor pegou um dos cotovelos e fez um movimento nauseabundo, o levando a tocar no ombro do braço oposto. O garoto continuava sério e com sono, sem esboçar dor ou sofrimento. Não demonstrava nenhuma reação.

- Mães nunca preparam os filhos para superarem dor e sofrimento. Os protegem como partes do próprio corpo. Pessoas na sua condição materializam nessas "entidades" a ausência dessa condição como compensação. Outra característica: vê como é franzino? Falta de hormônio masculino. Pessoas na sua condição projetam entidades assexuadas, mas dotadas de gênero. Isso ocorre por causa de exagero na ojeriza por questões sexuais. Tenho a certeza de que, se o despirmos mais, não encontraremos um pên....

A mulher interrompeu abruptamente a explicação sinistra do doutor. E não apenas porque o pavor diante daquela história terrível tinha se tornado um peso grande demais para carregar de uma só vez, mas principalmente porque não podia ouvir a palavra "pênis"...

- PARE COM ESSES ABSURDOS!!! EU VOU DENUNCIAR O SENHOR! AONDE JÁ SE VIU?!? A GENTE VEM PRÁ SER CURADO E ACABA LOUCO!!!

A mulher se levantou e segurou o pulso do filho com força para fazê-lo acompanhar sua saída do consultório com o mesmo ímpeto que ela. Porém, ao ser surpreendido com o safanão materno sem esperar, o rapaz apático se desequilibrou e caiu, desajeitado, sobre a quina da mesa.

A princípio, a pancada partiu sua cabeça em 3 partes. E, em seguida, percorreu num trinco transversal a partir do pescoço e espalhada através da coluna pelo resto do corpo. O trinco se dilatou e deu lugar a.. areia?!? Sim: seu corpo foi esfarelando em centenas de milhares de grãos de areia embebecidas em água, como uma parede recém-erguida que levou pouco cimento.

E o médico observava com piedade a mulher assustada que tentava amontoar os pedaços do menino. Que se espalhava pela sala e sujava todo o tapete.

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