Sem Olhar Para Trás

Sem Olhar Para Trás

Acho compreensivo ser julgado pelas pessoas que estão de fora e analisam a situação como quem vê o final de uma novela de TV. Acho até aceitável que muita gente queira acabar comigo ou fingir que não existo. Mas não aceito que gente instruída como vocês me atirem pedras, como se não soubessem com o que nós estávamos lidando.

Aceito até que me chamem de covarde ante as circunstâncias. Mas não vou aceitar jamais que me chamem de mentiroso quando dão a entender que deturbo os fatos em benefício próprio.

Descemos as cavernas até bem fundo, onde sabíamos ser mais ou menos onde ela morava. Acho que ficamos descendo no escuro por pelo menos uma hora e meia...  Avançamos até onde a luz podia alcançar e seguimos todas as instruções de prosseguir para além do bolsão de vácuo. Muitos, dos poucos audaciosos que se aventuram nessa descida, desistem nesse ponto porque é quase impossível respirar.

O caminho é muito difícil. Você vive descendo. Tem tantos caminhos estreitos que, se você parar para pensar na volta, não completa a ida. Em certo ponto, as coisas que lembram vida desaparecem. Nem insetos, nem água você acha. É preciso mesmo estar muito determinado para prosseguir até o fim. Até as estalactites assumem formas soturnas e a sombra que projetavam através das lanternas que Alessandra e eu carregávamos formavam curiosas formas monstruosas e parecia algum tipo de aviso.



Tomei um susto quando a vi se materializar no meio das pedras... Mas mostrei naturalidade, como se não ligasse para sua aparência repugnante. Tentamos o quanto pudemos não apontar as luzes da lanterna para o seu rosto.

Como todos vocês sabem, ela gosta de presentes. Levei um pente. Acho difícil que lhe seja útil, mas não vou ficar questionando o que essas coisas do éter fazem em seu tempo livre.  Alessandra levou um livro do Pequeno Príncipe. Não sei onde estava com a cabeça, aquilo não parecia ser muito de ler. E, mesmo se fosse, difícil imaginar alguém lendo naquela escuridão atroz e com tanta umidade.

Foi um de vocês que comentou que ela gostava de anedotas. Tentei contar alguma enquanto me preparava para mentalizar um pedido. Ia pedir para ser eleito Vereador em Cajamar e também a cura para uma enfermidade que me acomete há tempos, mas que não vem ao caso. Como o feitiço prega, consegui surrupiar umas quatro pedras. Ela sabe disso que fazemos - de entretê-la enquanto a roubamos - não tem como não saber. Só se faz de tonta. Basta que você interprete e tudo bem. Mas a Alessandra... não sei... sempre a achei um pouco "burra"...

Acho que ela simplesmente não podia ignorar a aparência da coisa... não tirava os olhos do rosto da velha... principalmente daquela metade aparentemente jovem que fica permanentemente com o olho de catarata estatelado olhando para você. Esse lado vive tendo tiques e se retorcendo e explicitando, por meio de expressões faciais, o que realmente pensa. É com frequência  que desmente tudo o que o lado ancião procura dissimular... Mas a Alessandra... a Alessandra é BURRA! Uma porta! Não sei quantos sinais tive que mandar para que ela percebesse que aquilo simplesmente não estava funcionando!!!

Fui notando a impaciência da metade jovem da coisa, enquanto o lado ancião se mostrava muito interessado nas bobagens que Alessandra fazia. Preparei minha mochila e apertei bem o cinto. Sabia que uma fuga era iminente... Lembrei das dificuldades da descida e até estudei uma estratégia para superá-las.

E o que eu esperava, infelizmente, aconteceu: a criatura pegara Alessandra a roubando... Vi o rosto ancião da fera parar de dissimular e mostrar ira e o enorme aguilhão, que até então repousava como quem se senta de pernas entrelaçadas, se erguer e dar uma chibatada em Alessandra... Mesmo paralisada, permanecia com a lucidez ainda mais aguçada, como já li certa vez. Vi então as paredes se contraindo e muita terra brotando do nada cobrindo a criatura e devorando Alessandra viva, como se fossem centenas de formigas...

Ela nem mesmo podia gritar devido ao veneno paralisante.

E a deixei assim, de costas para mim, enquanto fugia desesperado e sem olhar para trás...

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