"Sim"

"Sim"

Aconteceu em uma chácara abandonada na periferia do Sobral. Já ouvi muitas histórias sobre esse lugar. Dizem que a cidade cresceu em volta da Universidade em que estudo. Sobral é ainda é bem interiorana. Este é meu primeiro ano.

Os alunos veteranos decidiram dar uma festa de boas vindas nessa chácara. E é por isso que estou contando essa história. Eu não conhecia ninguém. Fui mais mesmo para fazer amizades. Mas não fiz nenhuma.

Não sei se foi porque fiquei muito impressionado com uma história que ouvi falar quando me mudei para Sobral... era uma lenda absurda sobre uma tropa do exército brasileiro  que tinha feito uma experiência macabra com uma fazenda da cidade... diziam que, durante a revolução, um comandante de uma tropa ficou tão insatisfeito com a recusa do dono da fazenda em abrigar seus soldados que, quando a guerra tinha acabado, voltou para se vingar em segredo. Diziam que ficaram pelo menos 1 ano mantendo-a sitiada como refém. Abusavam das mulheres e filhas dos fazendeiros e colonos, matavam os jovens e misturavam à alfafa dos cavalos a carne triturada deles, aos poucos, para tornar os cavalos carnívoros.



Diziam que conseguiram aperfeiçoar tanto a técnica que chegaram ao cúmulo de conseguir fazer o animal comer e beber o sangue das vítimas sem ter que sequer encostar um dedo no animal! Tudo na frente dos familiares...

Muitos de nós viemos de ônibus e não conseguimos carona, ou estávamos bêbados e drogados demais para dirigir. Então dormimos nas casas antigas que, mesmo abandonadas, estavam bem conservadas. Tive sorte em descolar uma que pertenceu, provavelmente, ao senhorio da fazenda. Eu e mais dezenas de jovens dormimos ali sem muito conforto. Alguns de nós - eu, inclusive - trouxemos sacos de dormir. Fiquei acomodado em frente a um longo corredor porque, na sala, já haviam muitos esparramados aqui e ali e também porque eu não queria pegar ninguém transando, ou vomitando em cima de mim...

Eu estava deitado em frente àquele longo e assustador corredor que dava direto à porta de entrada - que não passava de um portão baixinho e arrombado - quando avistei algo lá fora...

Tinha um borrão preto se mexendo na pradaria. Mesmo estando muito escuro eu vi! A festa já tinha acabado fazia tempo. Levei um tempão para identificar que aquilo era um animal e que se aproximava da casa.

Me sentei e olhei a volta: não dava para acreditar que estava todo mundo dormindo e só eu acordado!! O borrão veio se aproximando, mas não caminhava, deslizava devagar.

Aquilo parou perante a entrada e pareceu estudar o ambiente. Eu estava petrificado de medo e fingi que dormia, mas permaneci de olho. O luar estava muito bonito naquela noite e a lua funcionava como um holofote do além.

Eu ainda não podia distinguir o que era aquilo. Só vi que cheirou o batente da porta e pareceu indeciso se devia avançar. Acho que foi por isso que decidi permanecer fingindo. Só que aquilo entrou. E veio deslizando daquela forma aterradora naquele corredor comprido. E a soma de todos os meus medos se revelou: era um cavalo. E um cavalo negro e bem forte.

O animal era um cavalo. Mas não tinha jeito de cavalo e nem se movia como um cavalo. Não tinha aquele jeito casual e amistoso que eles normalmente carregam consigo. Sua respiração não denunciava nenhum resquício de relincho. Sibilava um pouco e era atrapalhada. Mantinha uma sugestão de voz que dava a impressão de que estava para dizer "sim".

E o cheiro? Ah, o cheiro!... Era de carniça! Um terrível cheiro de coisa morta e de fezes.

A medida que ele ganhava confiança e entrava no corredor deixava um rastro de um bolor preto horrível atrás de si em todos os cantos das paredes. Ainda não entendo como deu para perceber isso porque, mesmo sendo iluminado pelo luar, não era o suficiente para distinguir um detalhe daquele tipo.

O deslizar dele soava profano. Parecia que só se movia daquele jeito para contrariar a natureza. Deslizava bem devagar e de forma errante, não linear, obedecendo a alguma lógica que só aquilo entendia e sem mexer as pernas.

Então, aconteceu o pior: a criatura atingiu um saco de dormir ocupado por um casal... E, por um instante, parou de fazer "sim" enquanto respirava.

Cara... eu não acredito como consegui manter a lucidez!! A criatura notou o obstáculo e, de repente, fez um movimento brusco e asqueroso com o pescoço e cravou o focinho no saco de dormir!!

E ninguém acordava!!! E fez de novo! E de novo! E de novo!

(Por que ninguém acordava?????)

Eu ouvia o barulho dos ossos quebrando como se fossem galhos secos! E, logo, o cavalo se enjoava daquele sangue e continuava a deslizar, cada vez mas perto...

(E voltava a fazer "siiiiiiiiiimmmmmmmmm"...)

Perdi todo o orgulho que um homem pode ter. Perdi toda a soberba e toda a vaidade naquela hora. Me senti um inseto e que nada na vida realmente importava além da sanidade e daquelas coisas que a gente normalmente acha piegas, como amor, família, felicidade, etc. Eu tentava até respirar no compasso do vento, como se pudesse simular um vazio que deveria existir no lugar onde eu ocupava. Fechei os olhos e tentei afastar a figura da minha mente e pensar racionalmente. Notei que estava febril. Cheguei a imaginar que aquilo fosse um delírio. Senti que soluçava... (Estava chorando! E fazia 5 minutos! Nem tinha percebido!) E notei que tinha cagado e mijado!! - sim! Eu tinha me cagado e mijado de medo.

Senti o "sim" mais preguiçoso e mais próximo. Era aterrador porque agora eu sabia que era comigo.

(Será que sabia que eu estava acordado? Valia a pena abrir os olhos, ou me fazia de morto??? Fazia alguma diferença fingir de morto?????......)

Decidi abrir os olhos...

Abri os olhos e vi um globo preto bem grande colado na minha cara. Era tenebroso... Eram os olhos mais opressores que já tinha visto... e estavam, sobretudo, mortos! Até então, nunca tinha visto o olhar de um defunto, mas sabia dizer que estava, não sei explicar como... A retina estava tão dilatada e, ao mesmo tempo, tão agitada, que pensei que estava tendo um orgasmo ao me achar vivo...

Tive medo de desmaiar. Tentava virar a cabeça, mas a cabeçorra me acompanhava. Tentei virar a cabeça, mas manter o mesmo eixo e pude ver o resto dele... Tinha terra escorrendo da pele negra... Tive impressão de ter visto uma ou mais costelas saltadas para fora da pele. Mas o mais era que o resto do corpo permanecia no mesmo lugar em que eu avistava da última vez em que fechava os olhos, há pelo menos 10 passos!!... mas o pescoço... estava comprido e esticado. Dava uma volta em si mesmo, levando a cabeça a colar na minha cara!!

De repente, aquilo gritou feito uma mulher aflita! Deu um grito agudo, alto e assustador enlouquecedor!! Senti minhas têmporas gelarem e a cor sumir dos meus lábios, quando senti duas abençoadas mãos me puxarem pelas axilas para debaixo da cama. Mas, quando me dei conta, estava ao lado da janela, do lado de fora da casa.

Isso ainda não me colocou fora de perigo. Ainda dava para ouvir aquele grito apavorante. Procurei a volta (mas não procurei muito), mas não achei quem me ajudou. Saí correndo em disparada, deixando aquele grito para traz, até a estrada, que estava bem escura.

Corri como louco! Não sei dizer quanto tempo. Acabei por achar uma bicicleta abandonada que me ajudou a terminar a fuga até a pensão onde morava. (Era uma verdadeira ratoeira, só no dia seguinte que percebi o risco que corri com uma queda eminente, ou coisa pior).

Não fiquei sabendo de mais vítimas depois disso. E, como não conhecia o casal morto, também não fiquei sabendo se alguém chorou a morte deles.

Nunca fiquei sabendo quem me ajudou, mas sou eternamente grato. E a história acaba assim: sem heróis e sem moral.

E não tenho nenhuma vergonha em confessar que, mais de uma vez, voltei a urinar nas calças de terror, só em ouvir alguém sibilar ao dizer "sim". Ainda que fosse minimamente parecido como o que fazia o cavalo dos infernos naquela madrugada...


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