Sete virgens e uma Mula

Cresci ouvindo lendas sem fundamento sobre músicas com mensagens ocultas. Gastei um incontável número de vinis tentando tocá-los ao contrário e, tirando uma brincadeira ou outra que algum artista se prestava a fazer, tudo o que captava eram sons grotescos que assemelhavam a espirros prolongados que os mais supersticiosos creditavam a vozes de invocação do mal. Mesmo assim, adorávamos todas essas histórias e continuávamos a perseguir a todos esses mitos e a estragar bons vinis.

A história que estou contando, de alguma forma, tem a ver com essas lendas. Mas o credito muito mais à forma com que o ritual foi conduzido do que à música que experimentávamos. Embora ela seja bem sinistra sob certos aspectos. (Até hoje a ouço, embora nunca sem lembrar da história que estou relatando).


Sempre fui fã de Rock antigo e em especial de um som mais progressivo. Quando ouvi pela primeira vez "Touch and Go" de Emerson Lake & Palmer, decidi de imediato comprar um teclado, mesmo não entendendo nada de amplificadores, notas musicais ou partituras. Fiquei semanas para tirar o riff principal que cadencia a música e, mesmo assim, nem de longe ficou parecida com a original.

Emerson Lake & Palmer fizeram sucesso entre os anos 60 e 70, como a banda que não tinha guitarrista e que conseguia regravar música clássica de compositores conhecidos. Eles conseguiam transformá-las em Rock Progressivo usando, principalmente, teclados e órgãos. Também ficaram famosos pelas baladas pop, o que não é nem um pouco comum para quem fazia aquele tipo de som na época (se é que alguém mais fazia).

O tecladista Keith Emerson era tão criativo e alucinado que costumava rodopiar em seu piano de calda, suspenso por cabos, em seus shows. Durante os anos 90, ele terminava o último medley do show tocando “Tocatta e Fuga“ de ponta-cabeça e, quando enjoava, enfiava uma faca no pobre órgão Hammond para fingir que o matava. Depois, revelava uma mesa composta de teclados pomposa e grandiosa, repleta de fios, computadores, sintetizadores e amplificadores para terminar o espetáculo para delírio da multidão. Havia ainda alguns shows em que costumava escalar uma parede de rapel para chegar a algum instrumento, a tempo do resto da banda terminar alguma improvisação antes de chegar a sua vez.

As capas do grupo eram um assunto a parte. No começo eram etéreas e lembravam muito a piração típica da chamada "Era de Aquário". Depois, ficaram misteriosas e, por algumas vezes, macabras. Foi por causa da capa que comprei o “Brain Salad Surgery“, 4o álbum da banda. Depois descobri "Karn Evil 9", faixa tema do disco. Quase vinte minutos de uma música divida em três impressões que trata de uma ficção científica de um mundo em que todo o mal e miséria do mundo foi cativo em um circo e exibido como atração. No final ela termina contando uma guerra entre humanos e computadores, onde não fica muito claro sobre quem foi o vencedor, sendo o desfecho puramente interpretativo.

O disco tem alguns pequenos mistérios, por assim dizer. O primeiro é que, originalmente, ele não trás a música que dá nome ao disco, "Brain Salad Surgery". A música só foi incorporada na versão inglesa do álbum e, hoje, pode ser encontrada em edições especiais. E mesmo nessas edições, o folheto não trás a letra da música. Outro mistério é a capa do disco, feita pelo artista surrealista H.R.Giger (o mesmo que desenhou o monstro dos filmes "Alien"). Aterrorisante até para os padrões de hoje, ela trás escondida uma mensagem subliminar.

Até hoje sou capaz de ficar horas olhando essa capa. É um lindo trabalho de terror. Posso afirmar que ninguém é capaz de capturar a essência de um pesadelo como Giger. Ele ficou famoso por essa habilidade. Em uma de suas biografias ilustradas ele conta que já recebeu títulos de clubes de ocultismo que sequer sabia que existia, só pela influência de seu trabalho. Sua aparência atarracada, com seu forte sotaque suíço, lhe confere a aparência de um daqueles ajudantes de cientista-louco dos filmes. Daria para escrever páginas de curiosidades sobre esse sujeito, incluindo algumas bem aterrorizantes.

A cena da capa lembra uma máquina de tortura em forma de caveira onde, através de uma abertura em forma de lente, pode se avistar os lábios de uma mulher morta, além de um vislumbro de sua verdadeira aparência (que pode ser vista em sua totalidade na contra-capa). É perturbador constatar que, ao contrário do que se suponha, a mulher não está sofrendo. Aliás, não me lembro de um só quadro de Giger em que a mulher, por mais terrível que seja a cena retratada, esteja sofrendo. Elas sempre apresentam uma aparência de malícia ou êxtase sexual. Vim a saber mais tarde que o retrato desse disco esconde uma cena de felação. Você só a identifica se prestar muita atenção ao formato dos lábios da defunta e a dois reflexos muito discretos que residem perto do pescoço. A primeira vista visariam destacar o volume do pescoço, mas, na verdade, é o volume de uma glande vista por baixo. Já li uma vez que o termo "Brain Salad Surgery" também já foi uma gíria para felação. Talvez a cena toda choque tanto que, esse detalhe sutil, passe desapercebido pelas pessoas. Se alguém quiser saber histórias de bastidores sobre essa pintura - que, aliás, foi roubada junto com a da contra-capa - tem uma recompensa para quem achar os originais - você pode ler as próprias palavras de Giger em um dos três websites oficiais: http://www.hrgiger.com/music/emerson1.htm (infelizmente nenhum deles é bem atualizado).

Revisitei o álbum outro dia e, em especial, a música Karn Evil 9. Um amigo meu, daqueles com quem você pode falar de coisas etéreas e curiosidades sem que pense que você é louco apareceu com uma história que aguçou minha imaginação.

Ele estudava com uma garota que alegava ler mensagens ocultas nas músicas.

Ele alegava que a garota foi capaz de pegar todos os resultados de um complexo exame só interpretando mensagens ocultas em desses Raps moderninhos de hoje. No mesmo momento me veio à cabeça o que ela não poderia encontrar em Karn Evil 9?

Só de curtição pedi a ele que oferecesse à amiga bruxa a chance de interpretar a música e ver o que saia. Para meu espanto, ele voltou com um “sim“! Preparei um CD e removi as outras músicas do álbum, mantendo só as três partes de Karn Evil. Evitei qualquer menção quanto às curiosidades do disco, sua capa horripilante e qualquer coisa que pudesse tendenciar a garota. Nem o nome da música ou do grupo mencionei para ela não procurar pistas na Internet sobre do que se tratava.

Passadas algumas semanas, recebo alguns e-mails de meu amigo, em nome da garota. Infelizmente, ela não antecipa o resultado do experimento, mas insiste em me mostrar pessoalmente.

Como a maioria das pessoas adultas, me tornei um chato metódico depois que cresci. Eu nunca pensei que a garota fosse mesmo revirar a música em busca de uma mensagem oculta. Só pensei que seria engraçado fazer uma garotinha universitária que, normalmente estaria habituada a ouvir os sons da moda, gastar trinta minutos do seu tempo ouvindo algo tão peculiar (até mesmo para alguns ouvidos mais treinados). Insistia que fosse até a Universidade do Sobral ver a experiência com nossos próprios olhos.

Embora Sobral seja aqui do lado, meu lado racional me encheu de preguiça. Mas depois que meu amigo me escreveu contando que viu o experimento e que eu também precisava ver, fiquei curioso. Gastei um sábado me deslocando até a cidade visinha. A Universidade do Sobral, para quem não conhece, fica quase na zona rural. Depois que se entra na cidade, não demora muito para chegar.

Estavam me esperando. Estavam muito eufóricos e se puseram a me explicar primeiro o experimento e seu resultado, num ritual que julguei digno de “spoiler“ depois de tanto suspense.

Quando se ouve os 12:20 min (contanto a parte 1 e a parte 2), aproximadamente, o verso que está sendo cantado pelo vocalista Greg Lake, traduzido para o português é “Sete Virgens e uma Mula“. Segundo eles, quando esse verso é tocado, uma vibração tão forte é emanada que as lâmpadas fluorescentes - desligadas - ameaçam ligar sozinhas. Gabriela (vim a saber seu nome durante essa visita) relatou que o chuveiro de sua casa chegou a ligar sozinho nessa parte, quando tentou fazer um teste ouvindo esse pedaço isolado ao contrário.

Ainda no laboratório que fizeram, por pelo menos duas vezes, ambos foram acometido por alucinações. Relataram a visão de anjos, ou criaturas mitológicas como faunos.

Me conduziram ao laboratório da Universidade. O campus tinha um nome estranho muito incomum que não me lembro bem agora. Passei por algumas salas e fui capaz de ver um maquinário bem estranho, como versões adaptadas de retroprojetores e enormes máquinas de madeira completamente feitas de pêndulos, lembrando grandes catapultas espalhafatosas, mescladas a um relógio antigo. Haviam também máquinas de tear, igualmente feitas de madeira. E isso tudo constrastava com o pessoal de jaleco branco que circulava a todo o momento.

Me conduziram ao mais modesto dos laboratórios. Parecia um consultório antigo de posto de saúde. Tinham poucas cadeiras postas para se debater algo em comum. Cada qual contava com uma bacia de alumínio nos pés e uma toalha no descanso dos braços. Vi uma mesa no meio com um pequeno amplificador ligado toscamente a um Netbook distribuindo um Headset para cada. Me explicaram que o amplificador não amplificava nada. Só servia de "benjamim" para distribuir o som aos headsets. Foi o jeito que acharam para driblar o baixo orçameto e a falta de conhecimento em eletrônica e engenharia de som. Tudo soava muito amador e tosco. Um cheiro de fita isolante pairava no ar viciado da sala, que nem janelas tinha.

Me fizeram sentar. Colocamos os fones. Gabriela pegou uns gizes e fez círculos em volta das cadeiras como se fosse um estranho ritual profano, mas também bem geométrico. Meu amigo me olhava a todo o momento e repetia a mesma frase, como se fosse um menino que foi a montanha russa pela primeira vez e se põe a contar repetidas vezes para outro o quanto foi legal. Gabriela foi a última a se sentar. Ela trazia consigo uma prancheta com um folha de papel vegetal e um lápis número 2.

Em seguida nos deu as instruções. Primeiro me advertiu que aquele era um procedimento experimental e que, portanto, não deveria contar para ninguém. Depois nos disse para deitarmos nossas cabeças para trás e colocar a toalha a cobrir os olhos. Não era para tirar a toalha não importasse o que se ouvisse, sob pena de se contrair danos permanentes.

Notei que a toalha de meu amigo estava bem úmida. Ele percebeu minha observação e se justificou sem que eu fizesse a pergunta ''chorei prá caralho!", se referindo a outro experimento do mesmo tipo que fizeram sem mim. Ele ainda parecia muito empolgado.

De cabeça apoiada no encosto da cadeira e com a toalha cobrindo os olhos, começamos o experimento. Gabriela ficava fazendo círculos em sua folha de papel vegetal. Logo, o som do papel sendo riscado foi sendo acompanhado das familiares primeiras notas do teclado de Keith Emerson em seu Karn Evil 9 e dos primeiros versos de Greg Lake gritando a agonia de uma era cruel que se aproximaria.

Os versos foram passando e a parte dois (conhecida como "segunda impressão) começava: "Bem vindos de volta amigos ao show que nunca termina!! Estamos muito felizes que vocês vieram! Entre! Entre! Atrás do vidro tempos um cortador de gramas de verdade, cuidado quando passa. Se afaste! Se afaste!", anunciava o narrador da história em que se passa Karn Evil 9.

Nesse momento, o ruído do lápis - que golpeava o pobre papel vegetal com circulos desde que o experimento começou se intensificava e ficava muito alto. Fiquei curiosíssimo para dar uma espiada para ver o que se passava, mas pensei que não gastava o meu Sábado a toa naquela cidade para não levar o experimento a sério.

Depois do solo de teclado, o narrador-guia da música continuava a conduzir a excursão bizarra, quase que ao estilo "Alice Cooper" de freak show: "Se apresentando sobre uma privada, temos uma visão que fará vocês salivarem: sete virgens e uma mula. Fiquem frios! Fiquem frios!". Ouvi também o barulho da cadeira e abri os olhos por baixo da toalha e vi um vulto se levantar da cadeira de Gabriela e passar por nós. Mas o barulho do lápis não parava de triscar o papel, então tive que olhar...

Gabriela estava agachada do outro canto da sala, olhando para a parede com o rosto colado, o nariz pontando para o alto e os olhos virados. Estava aspirando uma enorme mancha de bolor da parede que não estava lá quando o experimento começou. E, enquanto a mancha transladava da parede para os pulmões da moça possuída, o lápis continuava a espancar o papel com seus círculos. Impecavelmente perpendicular, sem ninguém o segurando.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário!

Mais lidos