O Monstro da Chácara


Na infância, os quatro amigos passavam as tardes na chácara do pai do Olavo no Sobral aprontando traquinagens, engordando e ouvindo histórias. O pai do Olavo contava um cem número de lorotas para assustar os garotos e quase sempre arrancava mais risos do que sustos. O avô sempre estava presente, mas raramente participava das sessões de histórias de terror. Mas bastou um único conto para deixar os meninos instigados.

Ele dizia que quando estava virando homenzinho, seu pai havia enriquecido de repente. Havia mudado de hábitos abruptamente e passava mais tempo dormindo que acordado. Dedicava parte do tempo em ficar rabiscando símbolos estranhos que ele julgava ser a origem obscura da fortuna. Pouco antes de morrer, teria evocado sem querer a própria mula-sem-cabeça, que permaneceria perdida vagando por aquelas terras porque seu pai seria incapaz de mandá-la de volta de onde veio.

Daquele momento em diante, não haveria verão na chácara sem que os quatro não ficassem debruçados sobre a velha sacada da casa tentando descobrir onde a mula-sem-cabeça apareceria. Não falavam em outra coisa e não pensavam em outra coisa. Qualquer rugido, qualquer luz ou luar diferente tinha a ver com a mula vagando,  tentando voltar para casa.



Os três cresceram e trocaram os segredos ancestrais do avô de Olavo por garotas... A puberdade jogara um cobertor de descobertas por cima da curiosidade deles e o tempo passou... O mundo continuou a girar, os verões foram passando e as alianças foram sendo trocadas de dedos. Vieram os filhos, as responsabilidades, os contatos foram se restringindo e a vida tomou seu rumo. Hoje, com família feita e criada, aqueles outrora garotos voltam adultos responsáveis e barrigudos, a bordo de suas Hilux e de seus Elantras para a velha chácara do pai de Olavo. Eles vieram comemorar o casamento de um dos filhos com churrasco e cerveja.

Boomer, o pastor alemão, veio com eles. E também alguns namorados das filhas, trazendo cada qual muitas carnes e sobremesas. As esposas preparavam os espetos e, enquanto o faziam, tricotavam sobre a vida alheia e também discursavam amenidades sem-sentido típicos de educação muito extremista à direita.

Os homens ficaram um bom tempo preparando as grelhas. Não deixavam os mais jovens dominar seu ritual de forma alguma. Faziam intervalos constantes para beber e esfregar a barriga para disfarçar que, na verdade, estavam mesmo cansados. Falavam sobre futebol e sobre as ninfetas estagiárias do escritório, quando os filhos e as esposas não estavam por perto. Era possível ouvir, até mesmo da cozinha, suas risadas estridentes de tempos em tempos. Além do volume das vozes que aumentavam sem controle e desafinavam. Pareciam se divertir muito se provocando, mas era certo que nenhum deles conversava de verdade.

Enquanto as filhas moças faziam charminho fofocando e distribuindo risinhos de veludo e os outros jovens homens seguravam suas latinhas de cerveja para gargalhar o sufoco do Palmeiras no Brasileirão, Bummer ficava inquieto farejando um cheiro estranho, alheio a tudo o que se passava e que não podia ser percebido por nenhum deles ou por qualquer outro ser humano por estar além do espectro de cheiros por nós percebido. Se fosse possível estabelecer um paralelo com alguma sensação olfativa humana parecida, seria justo classificá-la como um cheiro de algo doce queimando.

Quando o churrasco finalmente começou, aplausos foram seguidos de gritos de alegria. Parecia que as pessoas estavam mais interessadas no primeiro fogo da grelha do que na comida. Os pais, como velhos senhores da tribo, desafiavam entre si sobre a maneira correta de se controlar a grelha. Ou sobre o jeito certo de se gelar a cerveja. Era uma daquelas ocasiões onde raramente alguém acaba sem ficar ofendido, tamanha quantidade de brincadeiras desajustadas, regadas a muito álcool e, principalmente, muita testosterona. Depois que as primeiras carnes eram comidas, os homens realizavam seu ritual tradicional de exibicionismo de todo churrasco: o futebol. E, enquanto as mulheres fingiam que torciam para esconder a sensação de que não estavam fazendo nada, planejavam sobre a viagem da lua de mel dos noivos.

Na noitinha, enquanto a cantoria desafinada acompanhava um violão suplicante, alguém notou pela falta de Bummer. O pastor alemão não era visto tinha muito tempo. Mas nenhum dos homens se mobilizou a procurá-lo porque o porte atlético no animal transmitia a falsa impressão de que era independente. E as mulheres só foram ficar mesmo preocupadas muito mais tarde, mas também não se mobilizaram porque aguardavam a iniciativa de um dos homens.

A noite estava linda e foi preparada para os jovens casais. Eles ficavam abraçadinhos à luz da lua tocando violão e cantando canções do Nando Reis e da Paula Fernandes. Fazia uma noite muito agradável, daquelas em que a chuva dá uma trégua, mas que o verão poupa a brisa e o orvalho da grama. Mesmo em casais, permaneciam todos unidos. Os pais agora passavam da fase da euforia para a da melancolia e, agora, sentiam-se nostálgicos. Enquanto os jovens ficavam sentados na varandinha, os pais se reuniam próximos a uma mesa de madeira onde as esposas jogavam baralho. E, apoiados no peitoral que dava para o mato, se lembravam de quando eram meninos e dos verões passados. Quando algo inusitado aconteceu...

(OLHA É ELA!!!!!! BUMMER, SAIA DAÍ!!!!)

No meio da mata, havia Bummer latindo incessantemente as árvores quando um clarão emergia de tempos em tempos. E, do alto, uma fumaça roxa fugia para o céu estrelado. Não demorou muito para verem surgindo da mata um tipo de cavalo pequeno sem cabeça e sem pescoço. E, mesmo da distância que estavam, dava para ver o lugar de onde deveria sair o pescoço, nauseabundamente transformado em uma serosa nojenta com um pequeno orifício e quatro pseudo-dentes espalhados pela grande abertura. Mas o mais repugnante mesmo eram as patas da frente, grosseiramente transformadas em mãos humanas.

Era como se Bummer atraísse a mula-sem-cabeça de dentro do mato com seus latidos. E ela saia da clareira caminhando de forma pouco convencional para um quadrúpede. Quando saiu de corpo inteiro da mata, lanternas foram lançadas por aquela pobre gente feliz e perplexa e deu para ver que aquilo tinha pernas traseiras muito fracas e finas e um quadril esquelético com pretuperâncias de costelas. Só o rabo era normal a de um burrico convencional. Pelo menos pelo que dava ver daquela distância.

Os jovens ficaram mais preocupados em pegar a câmera de vídeo para filmar o visitante do éter que proteger o pobre cachorro que se esgoelava de tanto ladrar. Alguns dos pais voltaram com armas - o que deixou muita gente muito mais perplexa do que a criatura. As mulheres não tiravam a criatura da mira com seus celulares.

Embora dois dos pais estivessem mirando seus revolveres para a mula, a verdade é que o que todo mundo queria mesmo era ver o que aquilo ia fazer. Por um infinitésimo de segundo, os pais se olharam e se viram como quando crianças novamente. Quando tinham o coração ansioso por aventuras e por descobrir o desconhecido, desde que o avô de Olavo contara há tantos anos aquela história sobre como seu pai evocara de forma desajeitada e involuntária aquela fera folclórica que, nem de longe, se assemelhava com o imaginário popular. Um deles comentou baixinho para tirar um sorriso nostálgico do amigo, que teve até os olhos brilhando por um instante:

- A gente não tinha procurado direito!

E aquele festival bestial da classe média parecia que iria demorar para sempre, quando finalmente teve o final trágico que a situação pedia: a fera arfou e espirrou um jato contínuo de fogo, do pequeno orifício de sua serosa nojenta, como se fosse um maçarico no pobre Bummer, transformando o pastor alemão em um espantalho agitado do inferno.

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