O Caminho de Casa


(Esta noite aconteceu uma coisa engraçada: me perdi nas fantasias que eu mesmo escrevo...

Era uma daquelas que se passam no mundo dos sonhos. Confusa, obliqua e que você, parte sabe que está sonhando, e parte não. Só tem certeza mesmo porque, de repente, se vê deitado na cama e percebe ter na memória acontecimentos que nunca aconteceram e que não se lembra de como começaram.

Sempre tive sonhos e pesadelos que renderiam bons Dalis (e bons Gigers). Tinha para todos os gostos e gêneros. Mas eles foram cessando, ou pelo menos parei de me lembrar deles quando acordava. Meus piores pesadelos, no entanto, pouco se parecem com os que fantasio. Acho que não têm o peso dramático para se tornarem interessantes para ser contados. Além de contar com uma narrativa que perturbaria algumas pessoas de algumas orientações religiosas.


Dos que podem ser contados, se destacam repetições e estruturas bem definidas que aparecem com frequência. Adoro pegar esses pedaços e teorizá-los, como o leitor que me acompanha pode ver em alguns de meus contos. Acredito que é comum as pessoas sonharem com algumas delas e acho que podem render muitas especulações interessantes. Principalmente porque ainda hoje muita gente busca sentido neles.

Enfim, vou manter a mesma fórmula para descrever o sonho sinistro e espontâneo que tive hoje e que poderia perfeitamente se encaixar nas famigeradas buscas em interpretar o mundo dos sonhos, o éter e a decifrar o Livro da Loucura que alguns membros da Irmandade Paulistana se dedicam misteriosamente em estudar em alguns de meus contos.

Só que, desta vez, lhe asseguro que ninguém tomou nenhum comprimido de Pronofol...)

* * *

Algum dia um psicólogo ainda vai decifrar porque sempre sonho que estou indo ou voltando para casa de, ou para, algum lugar muito distante. Acho que é devido a uma combinação entre uma antiga paixão que tive durante a adolescência, que morava bem distante, e um emprego bem ruim que tive e que era longe na mesma proporção, mas em direções opostas.

Não estou dizendo que tenho esse sonho todas as noites, mas que antes eram frequentes. Essa noite passei pelas mesmas estruturas. Mas não fui capaz de reconhecê-las da forma com que estava acostumado. Ou pelo menos se apresentaram de uma forma com a qual eu não pude lidar.

Para o leitor não me achar pretensioso antecipo que, até a metade do que me lembro, não sabia que estava sonhando. Nem sabia se estava indo ou voltando. Por isso, meu relato vai parecer estranho.

Estávamos a caminho de um destino muito distante. No começo, parecia sem propósito. Mas depois se revelou tratar da casa de uma garota com quem estava saindo.

Estavam me acompanhando meus dois irmãos. Eles pareciam bem mais jovens do que realmente são. Principalmente minha irmã: parecia ter uns 13 anos.

Nossa peregrinação começou na metade do caminho, numa longa avenida mal pavimentada que tinha, no meio, uma trilha formada de água parada. Pareciam aquelas estradinhas judiadas por caminhões pesados que dificilmente aparecem nos guias de ruas.

A paisagem era pueril e pobre, dominada por casebres velhos, galpões abandonados e terrenos baldios. Deveria ser umas quinze horas a julgar pela aparência do céu. Havíamos descido de algum coletivo que abandonou minha lembrança mais antiga que tinha do sonho. Só restando mesmo a percepção da situação.

Lembro-me que descemos por minha causa. Eu não conhecia muito bem o caminho, mas sabia que era por ali. Depois, percebi a besteira que tinha cometido ao descer no lugar errado...

Mesmo sem reconhecer nada, demonstrei confiança em guiar meus irmãos. Não admitindo, desde o princípio, minha falta de direção. E, por menos que reconhecesse o lugar, traçava rotas imaginárias tentando localizar algum lugar conhecido. A certa altura, usando uma lógica que só faz sentido no mundo dos sonhos, deduzi que aquela avenida mal pavimentada era a continuação de uma longa avenida conhecida em São Paulo - a Avenida Interlagos. (Na realidade, essa avenida em nada se parece com aquela...)

O tempo passava bem depressa, até mesmo para os padrões oníricos (por assim dizer) e fui me encolhendo com a dura perspectiva de que não era capaz de encontrar o nosso destino. Mas nunca pedia ajuda. Eu mentia para minha "tripulação" dizendo que era "logo ali", embora a paisagem não fosse nada acalentadora: lembro-me claramente de que a avenida ia longe, e descia antes de subir numa paisagem desoladora que terminava numa série de morros. E que muita sola seria gasta para chegar lá...

A dada altura de nossa caminhada, achamos um galpão abandonado (embora não parecesse antigo - os tijolos eram bem novos). Na entrada, vimos uma mulher magra e de pele clara, daquelas que aparentam estar sempre doente e que ficaria até bonitinha caso se cuidasse. Devia ter uns 45 anos.

Não me recordo bem o motivo, mas ela chamou minha irmã. Nós dois acompanhamos e entramos no galpão logo atrás. Não era um galpão claustrofóbico, típico de pesadelos. Embora abandonado, parecia preparado para ocupação. Provavelmente, uma marcenaria.

A mulher, então, sumiu de vista. Aproximamo-nos de duas divisórias em formato de "V". Minha irmã ia à frente. Comecei a ficar ansioso e reconheci, naquilo tudo, a estrutura de um pesadelo.

Minha desconfiança não foi suficiente para me tornar plenamente lúcido e nem para acordar. Acho que eu estava divido entre aceitar aquilo como sendo real e não.

Do pequeno quarto formado pelas divisórias descuidadas, avistamos novamente aquela mulher. Parecia, agora, decidida. Trazia uma chapa de raio X na mão. E vi, há uns 6 metros de onde eu estava, a chapa se iluminar bem forte para revelar costelas bem distintas, sem que guardassem uma simetria humana nelas.

Ela se adiantou para nos mostrar a chapa, mas num tom de cobrança: queria mostrar que estava doente e, de alguma forma maluca, eu era o culpado...

Fiquei preocupado de aquela mulher fosse fazer algo assustador, como se ela fosse uma daquelas fantasias que habitam o éter. Principalmente com minha irmã que ia à frente. Temia que ela fizesse algum movimento brusco e assustador, (que lhe saltasse os olhos da face, que vomitasse sangue, sei lá!...) mas o que me assustava mais era que ela levasse minha irmã embora, se tornando um daqueles pesadelos que pais e mães têm com frequência, onde os filhos se perdem, ou são sequestrados.

Tomei a primeira decisão consciente do sonho: sinalizei para que minha tripulação abandonasse o galpão e seguisse em frente. Eles pareciam tremendamente inocentes e acho que isso me fazia me sentir ainda mais responsável por eles. Felizmente me ouviram e tomamos novamente a avenida (“felizmente” porque não é comum que te obedeçam em pesadelos desse tipo. Quem já teve sabe como é). Lembro que alguém chegou a perguntar o motivo e eu não tive coragem de responder. Comentei, evasivo, que era só uma mulher bêbada procurando atenção. Fato é que, dado uns dez metros do armazém, olhei para trás e vi que ela nos seguia com passos bem lentos e com aquela chapa brilhante nas mãos. Agora tinha a aparência de uma morta-viva. Não prestei muita atenção nos detalhes, só em alguns pontos mal dados nos braços, os olhos negros e vazados, essas coisas.

Acelerei nosso passo sem revelar o motivo para ninguém perder a calma e ainda fiz uma brincadeira. Mesmo quase correndo, a mulher nos acompanhava com aquele passo arrastado e aquela aparência doente de algum demônio de pesadelo que vai pular na sua cara se você der mole...

Continuamos o caminho quase correndo. Agora, meu objetivo era outro: voltar para casa. Como eu disse, embora tendo reconhecido as variáveis de um pesadelo (o local desolador, a mabealidade anormal dos meus irmãos que eram mais jovens do que são, a figura sinistra imprevisível da mulher e, por fim, o medo de não achar o caminho) eu não tinha lucidez alguma. Meus pensamentos eram confusos e eu não duvidava da realidade a volta de nenhuma forma.

Decidi que, se avançasse para depois dos morros, encontraria uma avenida principal de onde poderia pegar um coletivo para um lugar conhecido. E, agora, tinha pressa: o céu estava começando a perder a vivacidade. Nem queria imaginar o que seria ficar perdido naquele lugar no escuro.

Até então não havia visto nem um fusca quebrado estacionado. Nada! Logo cruzamos uma rua e nos deparamos com um centro de comércio. Foi só então que a mulher parou de nos seguir. Não sei por que, ela se recusava em atravessar à encruzilhada (irônico, não? Exceto que só agora eu penso nisso. Nunca associei algum respeito por que a alma penada teria por encruzilhadas).

Não era um centro organizado. Era ainda muito pobre, mas pungente. Era uma mistura de terreno favela, com o bairro do Brás, São Miguel Paulista e a zona norte do Rio de Janeiro. Mas bem menos povoado.

A região era composta por um largo. Tinham carregadores de sucata e material reciclado indo e vindo de todas as direções. Não me lembro de ver um automóvel em funcionamento, mas certamente havia, porque eu queria sair do meio da avenida para evitar ser atropelado.

A região era margeada pelo morro que avistava antes de longe. E demorei a pensar nas dificuldades de trespassá-lo ao ser hipnotizado por uma linda paisagem.

Eram sobrados alaranjados lindos, incríveis, em meio às favelas que havia em volta, improvisando comércios e moradias. Eram sobrados bem construídos e até padronizados. Havia um mais distante que se parecia com um templo. Era feito por grandes tijolos laranja. E era um laranja de uma tonalidade tão viva que não existem na realidade.

A visão era tão maravilhosa que encheu nossos corações de alegria. Paramos, contemplamos e tiramos muitas fotografias com nossos aparelhos celulares. O que estava mais distante não era diferente dos demais, mas parecia um templo devido ao lugar de destaque que ocupava no largo e na vista. Parecia que os demais sobrados tinham copiado sua estrutura. Fazia muito mais sentido aqueles grandes blocos laranja e suas dezenas de tons que ocupavam a base e o telhado.

Olhar a paisagem contrastante do largo de sobrados laranja com a miséria ao redor me fez ver os morros. E me lembrei do caminho de casa e dos perigos de chegar caso escurecesse. Então tomei as rédeas novamente e comandei todos a continuar pela avenida que nos levou até lá. Mas já era tarde: já tínhamos sido capturados pela máquina de realidade inconsistente...

S. e V. descrevem as máquinas de realidade inconsistente como "estruturas previsíveis de repetição" e, mais adiante, como "fábricas defeituosas de realidade". Havia uma em que eu visitei diversas vezes em muitos sonhos que até me tranquilizava quando via: era composta por casas de subúrbios emendadas e justapostas, preparadas para formarem um labirinto. Porém, eu já passei tantas vezes por elas que sempre conseguia sair. Bastava seguir correndo, sem subir nenhuma escada até alcançar uma cozinha com uma mesa forrada com uma toalha xadrez de plástico abóbora. Sempre havia uma saída a partir dela, não importava para onde eu fosse! O segredo era procurar a cozinha e não a saída. Era até divertido: não importava a situação (se estava sendo seguido, ou perseguindo alguma coisa) bastava sair correndo e pulando de casa em casa através das janelas, ou dos cômodos, que estavam inconsistentemente emendados, à procura da cozinha.

Essa, porém, era inteiramente nova para mim. Se seguíssemos pela avenida, um corredor escuro se formava até resultar num grande breu absolutamente oculto e opressor. Era a coisa mais escura que eu já vi e, sem dúvida, justificaria o medo do escuro que a maioria das crianças pequenas têm.

Após dar três passos e ser envolvido por aquele escuro, recusei em continuar e evitei que mais alguém continuasse e voltei. Era incrível: recuar dissipava o corredor e você podia ver a continuação da avenida. Avançar formava o corredor.

Quando me afastei, olhei o céu: já era noite. As ruas já estavam desertas. Olhei para os morros e num tremendo misto de medo com arrependimento, já calculava a tremenda dificuldade que passaria se seguisse pelos morros no escuro.

Tentei umas duas vezes continuar a seguir a avenida. Impossível! O corredor era terrivelmente escuro! Eu não podia conceber o que seria nos perder ali dentro. E tive a impressão de que, caso nós três entrássemos ao mesmo tempo, a entrada se fecharia e estaríamos presos para sempre...

Uma culpa enorme se apossou de mim por não ter admitido desde o começo estar perdido e ter pedido ajuda... Parado no começo do corredor, eu pensava no morro e imaginava que tipo de terrores haveria ali, caso decidíssemos seguir por ele. Se ao menos estivesse sozinho... Mas havia meus irmãos comigo e seriam punidos por minha estupidez e teimosia...

Lembrei-me do destino do jornalista Tim Lopez e imaginei se, entrando nos morros, estaria invadindo alguma linha divisória que demarcasse algum país invisível, dominado pelo poder paralelo de algum tirano do submundo. Olhei para o breu do corredor e imaginei estar totalmente coberto pela escuridão, tentando tatear a parede e descobrindo estar numa prisão claustrofóbica muito menor do que pensava...

Então acordei... Fui aturdido tomar café e vi meu irmão mexendo no computador na sala. Era muito cedo e ele passou em casa para buscar alguma coisa, a caminho do trabalho.

Ele sorriu e acenou para não acordar todo mundo.

E, durante meu café, bem lúcido na realidade, eu me perguntava por que ainda sentia um resquício de culpa por algo que sequer aconteceu...

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