Precisamos falar do eclipse


É chegada a hora de falar do eclipse. Mais uma vez, companheiros, reafirmo o que já venho escrevendo tem um tempo. Os experimentos com a nova e fascinante matemática recém-descoberta da improbabilidade precisam sessar. Pelo menos até termos dados que nos tranquilize quanto aos efeitos de seu uso.

Existem eventos que se sucederam ao eclipse que são muito mais graves e que são desconhecidos por todos. Falarei deles mais adiante. Antes, quero chamar a atenção pela forma misteriosa e aparentemente “gratuita” com que essa matemática obscura chegou até nós e convido todos a refletir sobre a real intenção por trás da ajuda.

Faço um pequeno exercício de memória com vocês ao recordar as circunstâncias da chegada das fórmulas: foi em 26 de maio do ano passado. Eu ainda trabalhava no departamento de Física Teórica da Universidade do Sobral. Na época, falava-se muito de um caso envolvendo um penetra nas aulas que teria fabricado uma bomba para confrontar um professor, vitimando duas pessoas e provocando inúmeros estragos. Entre os mais antigos, ressuscitou o boato da tal da “Equação do Zero“. Segundo eles, os impactos não podiam ter sido resultado de uma bomba caseira, mas de um artefato avançadíssimo, já que nem pólvora a bomba levava.

Algumas testemunhas chegaram a afirmar que a bomba havia sido montada na presença de todos. A maioria se recusa em dar maiores detalhes do caso por uma possível intimidação do Campus, mas é óbvio que os estragos foram além dos divulgados.



Foi perto dessa época que surgiu o tal do Floriano. Apresentou-se como um estudioso em História e Matemática, mas hoje sei que todos os seus documentos eram falsos. Na verdade, ele tem uma clínica de psiquiatria onde clínica.

Ele apareceu com toda aquela matemática misteriosa e desconhecida, deixando todos os pesquisadores atônitos. Conseguia fazer operações estranhíssimas, divisões absurdas, teoremas complicadíssimos, expandido problemas que a ciência as tem como conjuntos vazios (sem solução). Mais notáveis eram os símbolos que ele usava: pareciam um novo alfabeto, misturados ao que normalmente se conhece. Hoje sei que são, em sua maioria, mesopotâmios. Mas há também símbolos que não se parecem com nada. Descobri que existem cálculos ocultos escondidos dentro de outras expressões mais complicadas, escritos de trás para frente. O calculador não sabe que existem. São como contas subliminares, o calculador as resolve sem perceber e, com frequência, mais de uma vez. Depois que você as identifica, fica divertido ver outras pessoas as resolvendo sem perceber.

Duas características chamam muito a atenção: a primeira é que não existem dízimas. Por mais repetidos que os números estejam, (por exemplo, 0,3333333...) elas sempre acabam mudando em algum lugar. E não importa se centenas de algarismos sejam necessárias para expressá-las, elas sempre acabam se resolvendo. Mesmo que o resultado seja um algarismo alienígena a mais. E um numero primo, como 7 por exemplo, pode ter ate 19 dimensões diferentes sendo que em cada uma delas pode assumir valores diferentes, inclusive representando letras do alfabeto para formar palavras. Algumas sentenças literalmente falam com o calculador...

A outra característica notável é que nenhum computador está preparado para calculá-las por completo. O raciocínio empregado nesses cálculos não foi previsto para ser computado. Exceto por pequenas contas aqui e ali que são necessárias para compor uma sentença maior.

Sei que existem professores que andam repassando cálculos obtidos por esse Floriano a seus alunos mais brilhantes secretamente e lhes propondo desafios para construir máquinas, robôs e até mesmo experimentos químicos complexos em busca de provar se essa bizarra matemática tem algum uso prático. E é pela razão a desestimular o uso real desses cálculos que emito mais este aviso.

Recorro a uma confissão para tentar dissuadi-los. E essa confissão tem a ver com o estranho eclipse lunar que ocorreu no dia dois de Junho. Falo daquele eclipse vermelho que assustou a muita gente e que durou até bem tarde, quase às dez da manhã, ocultando o sol até que terminasse. Muita gente pensou que o mundo estava acabando. Com certa vergonha, assumo a culpa desse evento e também de outros incidentes correlatos que a maioria nem sabe que existiu...

Pois pensei que o tal do Floriano tinha sido esquecido depois que os episódios envolvendo a tal bomba perderam o interesse. Qual não foi minha surpresa quando interceptei diversas cartas endereçadas a alguns professores (que prefiro manter em sigilo) com essa matemática estranha e instruções a aplicá-la sobre uma estranha estrutura mecânica em forma de pêndulo... Os primeiros esboços eram incrivelmente fáceis de seguir, ainda mais para alguém como eu que tinha estudado superficialmente aquele tipo de conhecimento e estava convencido que ele não levava a lugar nenhum. Aquele desenho era tão instigante... era a primeira vez que eu via aqueles cálculos acompanhados de alguma ilustração e fiquei muito curioso em saber para o que servia a máquina e o que aquelas contas estranhas tentavam provar... ou melhor, o que Floriano estava querendo que os professores de Física e seus alunos construíssem em segredo.

Levei um tempo para começar a ler os papeis. Sentia culpa por tê-los desviados e esperava que alguém desse pela falta deles para devolvê-los e inquirir para o que serviam. Mas ninguém veio... e a curiosidade se apossou de mim. A maior parte das coisas que descobri sobre esses números e sobre as verdadeiras intensões de Floriano veio desses estudos. Graças a eles que vejo tudo da forma clara agora e formulo esta carta para dissuadir o verdadeiro destinatário daquelas cartas a continuar a seguir as orientações desse senhor que não tem outro objetivo a não ser os mais egoístas e loucos possíveis.

Começou com a ilustração ao lado daquelas contas todas. No começo percebi uma máquina dotada de pêndulos concêntricos que se moviam sozinhos só com a ajuda da inércia e da gravidade e sem a ajuda de nenhum motor de espécie alguma. Mas depois percebi que havia um homenzinho ofuscado pela luz que emanava da máquina e que, a princípio, eu pensava que fosse um efeito de textura, improvisado no desenho em preto-e-branco feito com uma caneta simples demais para a sofisticação que o trabalho exigia.

Evolui alguns cálculos. Quando esbarrei em certos becos, ou porque eles superavam o que eu conhecia deles ou porque algum símbolo estranho barrava minha evolução, eu recorria a muita pesquisa. Foi assim que aprendi a maioria das coisas, muitas das quais, ocultas por Floriano. Em nenhuma ocasião o procurei. Não queria que soubesse que andava bisbilhotando correspondência alheia – e, no caso, remetida por ele.

Como comentei, existem cálculos que formam palavras. E essas palavras parecem que falam com você. Elas não são constantes, mudam sempre. Dependem de variáveis como o horário em que você os calcula, sua idade, etc. Existe um gráfico usado para se extrair as dimensões diferentes de um número primo. Parece muito com um daqueles jogos da forca. O fato é que você nem sempre tem que montar esse gráfico para obter os resultados, mas eu quis. Estava morto de curiosidade.

Refiz o gráfico umas duas vezes achando que tinha cometido erros, porque não tinha formado nenhuma palavra compreensível. Na terceira obtive resposta. Fiquei “griladíssimo“! Dizia “VOCÊ NÃO É O SONHADOR. ONDE ESTÁ ELE?“

Fiquei uma semana sem tocar nos cálculos. Estava entre o triunfo e o pavor mais desconcertante que um adulto pode experimentar. Depois disso, passei a dormir muito mal, não conseguia parar de pensar nos cálculos. Não sei se sentia medo, orgulho, ou vergonha (por agir como um supersticioso).

Ao mesmo tempo, aproveitei meu acesso livre às oficinas de mecânica e me pus a construir a máquina da ilustração.  Mas em escala bem menor, acho que tinha uns 60 centímetros. Queria saber se o cálculo sabia que eu estava construindo a máquina e como reagiria. Quando tomei coragem, voltei a prosseguir com a matemática e obtive a resposta “PEQUENA DEMAIS“. Pequena demais para o quê??? Não era difícil colocar a máquina para funcionar, mas essa resposta me deixou ainda mais receoso. Bastava levantar um pêndulo e deixar seu peso comandar seu funcionamento.

“Pequena demais“ para quê? Quem era o “sonhador“? Floriano? O destinatário da carta? Quem sabe se eu descobrisse a resposta para essa pergunta entenderia a outra. O mais provável é que o destinatário fosse o sonhador, porque o remetente era Floriano. Mas por algum motivo eu achava que não fazia sentido. Afinal, não era costume - e nem era preciso - calcular os anagramas. E, depois, era de se presumir que, se Floriano tivesse ocultado boa parte daquela ciência, provavelmente não ensinara essa também. E as palavras não vinham de uma pessoa, mas de um cálculo! Podia ser para qualquer um.

Contra a lógica inicial, deduzi que os cálculos esperavam ser recebidos por Floriano. Ele deveria ser o sonhador. Talvez o destinatário tenha guardado alguma rotina de prestação de contas em que devolvia a carta demandada. De qualquer jeito, eu tinha que assumir uma hipótese e escolhi essa: por algum motivo, Florano tinha esse apelido de sonhador.

Não tive escolha: voltei a fuçar as coisas do verdadeiro destinatário dos cálculos. Achei muitas cartas dentro de um caderno com as iniciais F.P. Peguei um bolo e um pacote de papel daqueles que se usa para vender balas, mas deixei papeis suficientes para não dar na vista. Cito um trecho de um fragmento que se mostrou bastante revelador:

“... QUERO ESTUDAR ESSE LIVRO MAIS DE PERTO, MAS NÃO QUERO TOMAR MAIS PRONOFOL PARA MANTER MINHA LUCIDEZ DURANTE O SONHO POR MAIS TEMPO. TENHO MUITO RECEIO DE FRITAR OS MIOLOS OU DE SER ATACADO POR VOCÊ-SABE-QUEM. RECEBI CARTAS DE GENTE QUE AFIRMAM TÊ-LA VISTO RONDANDO POR LÁ. – OS: PARE DE ME MANDAR E-MAILS! ESSAS PORRAS PODEM ESTAR SENDO RASTREADAS PELA SEGURANÇA DA REDE DE VOCÊS!“

Após analisar esse e outros textos, fragmentados e fora de contexto, pensei ter entendido uma sandice que eu ainda acharia absurda não tivesse ido tão longe a ponto de seguir as instruções que achei em uma dessas cartas que davam conta da busca por certo livro que só podia ser lido durante o sono profundo. Revirei o pacote de papel e achei umas balas grandes e brancas que esfarelavam muito fácil na mão. Deduzi que era a tal droga a que Floriano descrevia nas cartas. Então minha estupidez foi grande o bastante para colocar uma dessas balas na boca e dormir.

Tive uma das experiências mais incríveis e perigosas que alguém pode ter. Vi-me sonhando com a mesma lucidez de quando se está acordado. Eu podia notar todas as discrepâncias dos sonhos de forma consciente e singular. Vi as fronteiras entre o real e o imaginário muito próximas. Em alguns pontos era a rua de casa, em outros, um vale de cores laranja e roxo com um eterno entardecer. Havia o parque onde as crianças brincam todos os domingos e, de repente, erguia-se um arco colossal feito de dentes-de-leite a partir do chão, riscando toda a abóboda celeste até onde terminava o firmamento. Uma miríade de cores se espalhava por toda a parte. Impossível não se impressionar! Mas havia também uma presença oculta muito marcante e inexplicável que me fazia sentir um certo medo misterioso e constante.

De repente, me vi em minha escola, onde cursei a quarta série. Revi todos os meus amiguinhos sentados em suas cadeiras do jeitinho que os conheci. Só eu não era criança, mas ninguém percebia. Havia uma delas chorando no canto enquanto a sala entoava sua humilhação em coro:

MEDROSO! MEDROSO! FLORIANO TEM MEDO DE MULHER!

Vi o pobre garotinho pular da cadeira quando uma terrível mulher surgiu do canto oposto aonde estava centrado. Ela pareceu surgida de um borrão confuso da parede, feito de mofo. Era uma figura medonha de véu de luto muito magra e muito esguia. Tinha olhos esbugalhados que não focalizavam a mesma coisa e davam espasmos aleatórios e perturbadores. Sua pele era muito branca, tinha as maças do rosto fundas que guardavam um azulado doentio. Os braços estavam todos rabiscados com letra-de-mão. E ela emanava um cheiro de terra molhada muito forte. Inexplicavelmente insuportável.

As crianças da sala continuavam a cantar o caçoo ao pequeno Floriano. Olhei para ele nessa hora: não tinha rosto! E a mulher vinha caminhando com safanões no corpo e rodopios bruscos barulhentos e perturbadores. O cheiro de terra era muito insuportável aumentava quando ela se mexia. E o mofado de onde ela surgiu pretejava a parede toda se espalhando, como se fosse uma doença que afetava só o que fosse inanimado. E o garotinho sem rosto se encolheu no canto da sala, o mais distante que pôde, enquanto a viúva estranha se aproximava fazendo movimentos, ora lentos e ora bruscos, em direção a ele.

Fiquei com muito medo e tentei sair dali. Eu estava no meio do caminho, os alunos tinham aberto um círculo a nossa volta. Mas minhas pernas estavam paralisadas. Então olhei para a mesa onde estava sentado o pequeno Floriano: notei um livro velho sobre ela. Consegui me mover de forma muito lenta para ele. Quando me sentei, tudo ficou para trás. Estava em uma campina verde muito bonita e alegre, mas muito silenciosa e soturna. O livro continuava na minha frente. Estava na página 63. Não sei bem porque, preferi não ler. Marquei a página com o dedo e evolui até o meio dele. Havia contas lá! Muitas delas semelhantes às que Floriano nos mandava!!! Então era dali que surgiam aqueles números! E eram tantos! Embora muitas das fórmulas fossem as mesmas, havia centenas delas que eu não imaginava que existia! Para o que serviam?

Voltei para a página 63 e li a primeira frase que era a continuação de algum parágrafo que começara na página anterior, para minha surpresa, era um texto escrito na primeira pessoa, como se fosse eu mesmo que tivesse escrito:

“...CHEGUEI NA CAMPINA E ACHEI O LIVRO DA LOUCURA ABERTO NA PÁGINA 63. RECEEI EM CONTINUAR A LÊ-LO PORQUE SOU UM COVARDE E GOSTO DE ATRIBUIR IMPORTÂNCIA À COISAS BANAIS PARA EVITAR ENFRENTAR MEUS VERDADEIROS PROBLEMAS. INSISTO EM CULPAR O VELHO, PORQUE QUERO SER O VERDADEIRO SONHADOR. LI A PÁGINA 75 E ACHEI MAIS DAQUELAS CONTAS. SÃO A COISA MAIS LINDA QUE JÁ VI! NÃO POSSO MAIS RESISTIR EM USÁ-LAS PARA TORNAR TUDO O ÉTER. PORQUE O ÉTER É TUDO E TUDO É O ÉTER...”

Não consegui ler mais nada. Estava arrepiado dos pés à cabeça. Então, levantei minha cabeça e vi a máquina que eu tinha montada em tamanho natural: tinha cerca de 1,60 m. Vi o menino sem rosto diante de mim, segurando o pêndulo que dá funcionamento a ela. E uma voz terrível como um trovão ecoou de dentro do fundo da terra, mas que eu atribui como pertencendo ao menino:

“É LINDO NÃO É? QUERO MUITO SABER PARA O QUE SERVEM! MAS ELA NÃO DEIXA! NÃO AQUI! PRECISO LEVAR PRÁ CASA PARA TERMINÁ-LO”

O menino virou o pêndulo e eu acordei na tarde do dia seguinte em minha cama, com uma dor de cabeça do cão... estava empapado de suor! A única coisa que consegui foi me debruçar na pia da cozinha e beber litros de água! E da torneira mesmo!

Quando consegui organizar meus pensamentos, caiu a ficha: Floriano estava querendo construir uma máquina que pudesse trazer objetos do mundo dos sonhos para o mundo real. E ele queria obter o livro para que pudesse lê-lo e estuda-lo sem ser incomodado por aquela figura sinistra que, talvez, faça parte de seu passado.

Eu sei que isso tudo parece absurdo... mas a história toda também é. E sabemos que os números realmente funcionam. Mas antes que, aos muito crentes que se sintam empolgados a continuar, prossigam nos estudos, deixe-me contar o desfecho para convencê-los a desistir de qualquer investigação:

Depois de muito pensar, fui até meu laboratório e decidi colocar a máquina para funcionar. Ela era pequena demais e era justo que eu o fizesse antes que Floriano tivesse a chance.

Quando desci a alavanca, o fim do dia virou noite... Um eclipse vermelho escureceu a lua, dando um aspecto de entardecer à noite escura. E um zunido agudo ecoou, apagando todas as luzes. Só a máquina funcionava, e ela não dava indícios de que iria parar sem interferência externa...

Quem se lembra dos jornais do dia seguinte, eles davam conta de diversos fenômenos que a maioria não correlaciona, mas que estão totalmente envolvidos: um grande número de partos prematuros e desaparecimentos. Grandes áreas verdes amanheceram com desenhos geométricos, ou completamente secos. Espécies inteiras desapareceram em algumas matas dos arredores, desequilibrando o ecossistema e espalhando pragas de insetos ou de animais pequenos nos bairros dos subúrbios.

Hoje julgo que esses eventos devem ter ocorrido devido à proporção da máquina que construí. Ela deve ter desestabilizado a ordem natural das coisas. Temo em saber o que aconteceria se ela tivesse a dimensão correta. Eu teria conseguido trazer o livro para a realidade? Ou o que mais viria junto? Eu estaria certo de minhas deduções, ou teria sido levado a crer que sim?

Mas o que mais me assustou a ponto de formular este alerta é um sinal que não apareceu em nenhum jornal. E que eu, particularmente, acredito que tenha vindo do mundo dos sonhos:

No céu, ao leste da Universidade do Sobral, por um breve instante, apareceu uma estranha Aurora Boreal. E toda feita de sangue.

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