Xadrez Negro

- Pensando em quê? - Perguntava Natália,  enquanto colocava o cavalo no tabuleiro  depois de notar, pelo espelho, que Maurício permanecia muito tempo quieto no mesmo lugar.

- Em nada especial, só que nunca vi esta merda dar certo. - Respondia sem coragem, arrastando as palavras num ritmo que mal dava para entender, depois que puxou uma carta e pareceu não gostar do que viu. Então, retirou um de seus peões, praguejou alguma coisa prá si mesmo - possivelmente "merda" - e tocou o sino.

- Acho que você devia pedir alguma coisa cara em vez dessa besteira! - Ao contrário dele, Natália deu um risinho quando tirou uma carta que guardou em separado e escolheu um cavalo e uma torre para se juntar a seu exército. Deu um tapinha na cuia de água para molhar os dedos, se benzeu de um jeito estranho e tocou o sininho.


- Eu não! Sempre quis ser magro... Merda! Eu odeio esse jogo... Além de não funcionar ainda perco... - O sininho soava novamente.

- Ué? Por quê quer ser magro? Você tá bem assim - "TRIIIMMMM"

- As garotas gostam de caras magros. - "TRIIIIIMMM"

- Gostam nada! Eu não gosto... - "TRIIIIIIMM"

- Então vamos pro motel em vez de perdermos tempo com este jogo babaca! - Uma risada gostosa foi compartilhada entre os dois, mas a ideia causou nojo à Natália que tratou de mudar de assunto sem transparecer.

- Eu só acho que você devia gastar seu tempo pedindo uma coisa útil prá você! Por que não pede um carro? - "TRRRRIIIIIMMMM"

- Bem que essa morta podia logo aparecer para animar um pouco... - Tratava de mudar de assunto Maurício, assim que notou a esquiva da moça.

* * XADREZ NEGRO: INSTRUÇÕES DE JOGO * *

Duas pessoas se confrontam de costas em um tabuleiro semelhante ao tradicional para disputar uma partida.

O tabuleiro é ligeiramente maior que o do jogo tradicional. Tem uma quantidade maior de casas e um dos lados é irregular, dando a curiosa ilusão de ótica de que o lado oposto tem ainda mais casas que o seu. Diferente do tradicional, são usados um baralho (que deveria ser o do tarô, mas que muita gente improvisa com o tradicional) e cuias de água (que normalmente ficam próximas aos pés e  ao lado do tabuleiro). Constituem parte final dos apetrechos necessários dois espelhos grandes que se opõem aos lados do tabuleiro e um sino para cada jogador.

Não existe o "bispo" por ser uma representação de um membro da Igreja. Embora alguns o incluam no jogo numa versão adaptada na qual a peça consiga ficar de cabeça-para-baixo. Mas existe uma peça a mais: "o camponês". Ela tem a habilidade de jogar para os dois lados da disputa, independentemente da cor ao qual pertença, simulando um jogo de interesses.

Todas as peças são incluídas de costas e o tabuleiro começa vazio. As peças são dispostas ao acaso, mas dentro de seu próprio lado do tabuleiro. Quem determina que peça é colocada é o baralho, que é divido no começo da partida. As cartas também definem a sorte delas, que podem ser removidas e até multiplicadas.

Os jogadores começam de costas um para o outro e virados para um espelho grande. Eles só podem se virar para o tabuleiro quando ouvem o sino dado pelo adversário, sinalizando sua jogada. Mesmo com o espelho, não é possível estudar o tabuleiro ou o adversário, porque a imagem do próprio jogador fica refletida nele. O grande segredo está em se decorar o tabuleiro durante os poucos instantes em que se está manuseando suas peças. Manuseio esse que nunca pode ser superior a 30 segundos. Como no original, vence o jogo quem encurralar o rei.

Quem joga o Xadrez Negro deseja fazer pedidos ou alguma pergunta, normalmente relacionada ao futuro, amor, dinheiro e essas coisas. Acredita-se que o jogo é um canal de comunicação com as criaturas do Éter . Há quem acredite ainda que todos os movimentos do jogo representam uma metáfora da vida do jogador e que pode ser interpretada como algum tipo de conselho por pessoas com sensibilidade acima da média.

Mas existe uma outra lenda a cerca do jogo de que, com os movimentos certos, se é capaz de evocar a viúva do éter através dos espelhos que são posicionados na frente dos jogadores. Esse boato ganhou força depois que a carta de João Ribeiro  ganhou a atenção do público ao relatar a aparição com tamanha quantidade de detalhes.

Esse jogo é popular somente entre frequentadores da ordem secreta que existe na capital paulista. Sendo jogado por membros, frequentadores, ou familiares de ambos que tomam conhecimento do jogo. A dificuldade em se arranjar espelhos grandes justapostos também é um obstáculo para a popularização dele.

* * *

Estavam a jogar esse jogo Maurício e Natália em uma casa grande onde, antes, vendiam vestidos de noivas. Hoje a casa era alugada para festas, enquanto se desenrolavam os trâmites burocráticos para sua venda e posterior demolição para dar lugar a um posto de gasolina e um estacionamento grande.

Acontecia uma festa na ocasião que os dois achavam entediante. Por isso, estavam recolhidos em um cômodo afastado e mal iluminado de onde não dava para ouvir o som da festa. Não chegava a se parecer com um sótão. Era mais como um quarto de uma princesa de contos de fada, repleto de espelhos, cama larga e roupas de todos os tipos, mas que não era habitado há muito tempo. Assim que chegaram, Natália, que gostava de bancar a exotérica, tratou logo de acender incensos e deixar a luz baixa. Maurício se alegrou e, por um instante, pensou até que iam transar depois do jogo. Mas a garota não demonstrava nenhuma abertura para com ele que, logo, figurou o amigo introspectivo e deixou rolar, ficando taciturno.

Natália conhecia muito bem o jogo porque já viu o pai jogar (era dele a maioria dos apetrechos necessários). Maurício se interessou quando uma vez leu sobre o jogo na Wikipédia. Ele já tinha jogado algumas vezes na casa dela numa época em que ele achava que tinha alguma chance com a garota.

Eles terminavam de colocar todas as peças que podiam e o jogo avançava. O ruim de jogar essa versão do jogo era que não contava só com a inteligência. Como os movimentos dependem das cartas, se você não tiver sorte, parece que tem sempre alguém te atrapalhando. E era exatamente esse o pensamento de Maurício. Mas isso não importava muito porque era assim mesmo que as coisas funcionavam com ele: tivessem cartas ou não para atrapalhar.

Conforme a partida fluía, a garota ganhava gosto em provocar ciúmes no rapaz. E só por capricho. Se alimentava da depressão dele, quando falava de outros garotos, de casos que tinha e até de algumas histórias picantes que, como sempre, não tinham ele como protagonista.

- Está abafado aqui! Parece que não assopra nem uma brisa! - Se abanava a garota fazendo charme com as cartas.

- Nossa, mas será que a festa acabou? Não dá para ouvir nada! Vão esquecer a gente aqui!

Maurício terminava de fazer o que julgava ser uma jogada muito inteligente quando, de repente, pareceu que ia ganhar a partida. Para ser mais específico, ele padecia daquela mania besta de querer agradar todo mundo e, secretamente, não estava tentando vencer o jogo para valer. Mas dar aquela guinada, no momento em que a garota cantarolava suas juras de amor recebidas de seus fãs, tinha um sabor de vingança reprimida. Quando ele pensou ter visto uma imagem se formar no espelho...

Através de seu espelho, Maurício pensou ter visto um borrão preto com a textura de uma fumaça muito densa e fuligem se formar no canto de uma parede do lado oposto ao seu e de frente para Natália. Mas que seria incapaz para ela ver porque seu espelho lhe taparia a visão.

Durante um breve intervalo de tempo, o jovem tentou fingir que não vira aquilo e tentou se concentrar nas cartas e tentar se lembrar da posição das peças no tabuleiro. Mas só conseguia pensar nas histórias que diziam daquele jogo e no que as cartas misteriosas de João Ribeiro diziam a respeito da viúva do éter. E a curiosidade era tamanha que ele tinha que dar uma espiada e... a mancha continuava lá! Cada vez mais espessa e independente!

Pensou em falar com Natália, mas temeu que ela o achasse um medroso e o rebaixasse mais ainda. Então, tratou de continuar a tentar ignorar a coisa... Quando ficou tão apreensivo que mal se lembrou de tocar o sino. Tomou um susto quando a companheira subiu o tom de voz: "Oh! Tá demorando muito!!"

Natália passou a cantarolar uma música sem letra que parecia música de ninar. Até hoje Maurício não consegue dormir direito à noite porque pensa ouvir a mesma música sendo cantarolada no pé do seu ouvido às altas horas da madrugada. Quando ele se virou para o tabuleiro, no seu turno de jogo, ele não se conteve e devolveu outra espiada para o mesmo canto que viu do espelho e viu uma figura formada. Uma figura que não podia ser interpretada como uma mera ilusão: tinha surgido uma mulher com eles naquela sala.

Ele teve muito medo, mas ainda assim fingiu que não viu nada. Sua covardia falou mais alto e, como uma criança mijona, criou a ideia boba de que, se permanecesse quieto, o bicho não notaria sua presença e iria embora.

Pensou em muitas coisas: que não era certo brincar com aquele tipo de jogo, mesmo sabendo de todas as histórias sobre ele. Que não tinha aproveitado bem a juventude, e principalmente, em uma forma de afastar o desfecho trágico do relato de João Ribeiro de sua memória...

Durante aquele tempo, só dois sons podiam ser ouvidos naquela sala: o dos sinos e o do cantarolar de Natália. Era tarde e não era de se espantar que as pessoas procurassem fazer pouco barulho por estar com sono. Por isso Natália não estranhou o silêncio do amigo que, agora, quando se virava para seu turno, mantinha a cabeça pateticamente abaixada para não encarar a mulher que permanecia no canto afastado do lado de Natália. Porém, através do espelho, ele a mantinha a espreita para ver o que ela ia fazer.

Em um de seus turnos, ele decidiu levantar a cabeça para olhar se a mulher continuava onde estava e se assustou quando notou que ela estava muito próxima, bem em frente à Natália! O espelho havia desaparecido sem motivo, mas ela continuava sentada olhando para as cartas e cantarolando! Tomado de terror, ele olhava para aquela mulher e tentava entender o porquê Natália não notava sua presença!

Magérrima e pálida, a viúva do éter permanecia parada em frente a Natália, onde Maurício a achou, de pé. Eles ficaram pelo menos uns 5 minutos assim. Ele temia que um gesto seu a fizesse mudar de posição, como se ela fosse uma cobra pronta para dar o bote.

Não dava para saber se ela olhava para ele porque seus dois olhos focavam pontos diferentes ao mesmo tempo, não seguindo a direção para onde o rosto apontava. Mas era certo que o nariz apontava para ele.

Ele notou que ela aparentava ter uns 35 anos, se estivesse viva. Tinha cabelos pretos, lisos e longos, mas ligeiramente envelhecidos. Causava espanto o movimento de respiração de seu peito e um fino chiado que saia dele que sibilava uma voz parecida com um gemido quando o ar se soltava dos pulmões. Parecia que ela respirava por capricho (porque era de se esperar que não precisava), embora o fizesse com muita dificuldade.

Dizem que a voz da viúva, quando pronunciada, pode enlouquecer um homem. Mas pouco se tem notícia de algum relato em que alguma comunicação verbal tenha se estabelecido.

Ela tinha uma boca bem desenhada que destacava uma presença marcante feminina, mas com lábios muito ressecados e finos agora. Devia ser uma morena bonita e elegante quando viva. Agora, era muito esguia e repugnante. Seus membros eram tão finos e longos que pareciam borracha. Mas o que marcou muito Maurício foi reconhecer em seus braços desnudos aqueles rabiscos escritos, denunciados nos diários de João Ribeiro. Rabiscos que ele preferiu não ler, com medo de que ele pudesse ser perseguido da mesma forma que o falecido.

Outra característica marcante de sua presença é um forte cheiro de terra molhada que sempre acompanhava essas aparições e que inundou a sala assim que a visão foi flagrada tão próxima. As paredes do lado de Natália estavam inexplicavelmente tomadas de um bolor opressor e tomaram a sala sem nenhuma explicação.

Maurício não conseguia se conter e engoliu em seco... Nesse momento, a viúva fez um movimento largo e retorceu suas pernas e suas ancas num movimento grotesco e elástico que não poderia ser imitado por nenhum ser vivente sem causar a quebra de nenhum osso e se agachou. Ela então levantou seu vestido em frente a Natália, provocando um tombo em Maurício que permanecia muito tenso... E ele ouviu um barulho característico... Era urina! A viúva estava urinando nas mãos de Natália!!! E Maurício podia ouvir, petrificado, que sempre que a urina tinha seu som abafado pela pele da amiga, seu canto de ninar se transformava numa voz horripilante e desafinada de acordes dissonantes e sem sentido. Ora alternando entre sons agudos, como se fosse um choro que se transformava em uivo, ora alternando em sons graves, imitando a voz de um homem, até outros ainda mais graves, difíceis de se descrever do que sejam...

Talvez inspirado pelos relatos de João Ribeiro - que chega a citar um princípio de luta corporal com a entidade - Maurício reuniu um pouco de coragem e se lançou para as duas, a fim de derruba-las. Ele não sentiu menos medo do que antes, pois, mesmo que os olhos não apontassem para ele, a direção do nariz da viúva-do-éter denuncia o local de sua atenção. E o acompanhava para qualquer local que ele se movimentasse.

E os três se espatifaram no chão! Pela primeira vez, Maurício encarou a amiga de frente depois da aparição. Ele notou queimaduras horríveis em suas mãos, pulsos e pernas; com respingos por toda a parte onde a urina tocou. Ele a colocou nos ombros e avançou para a porta, sem se preocupar se a posição era confortável ou não para a moça.

Desta vez, porém, ele deteve a curiosidade em devolver o olhar para o fantasma que parecia não fazer muito esforço para se levantar, ou ir atrás dos dois. Ele se deteve, muito mais por medo que por valentia. Medo de perder o pouco da coragem. Porque, agora, sua preocupação era só a de atravessar a porta com Natália. E ainda bem que não o fez! Porque, como se tivesse um trunfo, ou por achar graça da situação, no abominável rosto da viúva, residia agora um desproporcional sorriso que desfigurava completamente sua face: literalmente de orelha-a-orelha...

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