O Vulto

Nunca tinham dado muita importância para o vulto que morava na biblioteca da Universidade desde incontáveis anos. No começo, costumava insinuar sua existência no canto esquerdo da vista, próximo ao ponto-cego, como fazem a maioria deles. Depois, se transformava em qualquer coisa para fazer se passar por alguma silhueta mal interpretada à primeira vista.

Vivia dessas aparições. Estava sempre vestindo o mesmo pulôver cinza-sem-graça. Tinha meia-idade e estava sempre lendo o mesmo livro de capa branca e amassada.

Se a vontade de todo anônimo é ser celebridade, a de todo vulto é ser existência. Ser sólido e falar das coisas. Falar do que viu, ser vivente e interagir com os outros. Porém, os vultos não têm linguagem linear, sequer falam a língua dos homens. Conhecem o verbo ancestral, dominado apenas pelas coisas ocultas e outros seres que habitam a profundidade do éter.


Passou para à condição de "coisa quase existente" quando uma menina o surpreendeu e, sem saber, provocou uma "inconsistência" na Existência. Ela fraglou o vulto antes que ele tivesse tempo de "inanimar" em outra coisa. Desde então, ele ficou preso na condição de "coisa-meio-existente", causando uma ruptura no Sentido e na Essência das Coisas.

A menina olhou para o vulto recém-materializado e logo se viu mergulhada pela imensidão da retina do homem que pareceu assustadoramente muito próxima. Viu que todos os tempos de todas as eras passavam sobre ela, como se fossem memórias do vulto. Mas tudo de forma muito rápida, desconexa e fora-de-ordem.

Sem saber, a menina também tinha atingido o estado de "Inconsistência da Existência" e não podia mais se definir como sendo real.

E as eras passavam numa velocidade tão rápida e atroz que traziam uma sensação de pequenez e solidão enormes, embora também provocasse euforia. Ela viajou alguns milhares de anos quando, finalmente, conseguiu distinguir imagens disformes de cores confusas se fundindo para dar formas a outras formas, infindavelmente mais complexas. E deduziu estar presenciando o surgimento de outro Universo. Quando, de repente, mergulhou em um grande vazio para finalmente se deparar com um abismo muito profundo e colossal que pensou ser o Inferno.

A profundidade vertiginosa era tamanha que ela era induzida ao estrabismo se tentasse seguir com os olhos a parede até o fundo. A circunferência do abismo parecia ter a largura de um enorme estádio de futebol, mas não era regular, apresentando diversas falhas, bem normais aparentemente.

Haviam dezenas de fileiras de coisas bestiais que lembravam homens e mulheres chorando e gritando, enquanto caminhavam até o precipício para atirar bebês sobre ele - aparentemente, contra a vontade.

A visão do abismo era tão opressora que a menina começou a enlouquecer aos poucos, mas de maneira progressivamente mais rápida. E ela teve vontade de arrancar a própria pele para sair dali, quando sentiu que algo muito grande e furioso devorava os bebês que eram atirados e se mexia no fundo colossal do abismo, ameaçando subir e se revelar em segundos; numa profundidade que deveria ter milhares de quilômetros de distância.

Ela procurou o homem da biblioteca com a cabeça, mas não achou. Parecia que ela estava dentro dele agora, embora presenciasse aquele Universo primitivo e abissal. Seus sentidos foram aos poucos surgindo, mas não conseguia definir se estava em pé ou deitada. Notou lágrimas jorravam de seus olhos, formando uma aparência de filme de terror. Teve medo de ficar cega. Teve medo de morrer; ali mesmo, naquele lugar infernal.

Então, todas as coisas que atiravam seus bebês no abismo, de repente, pararam de chorar. E se afastaram, demonstrando sinal de reverência, diante da presença de alguma figura ilustre e muito importante. E trombetas soaram muito distantes. E ela viu uma cabeça muito grande surgir do abismo. O tempo pareceu correr muito devagar quando aquela cabeça informe e maldita se levantava do abismo secular, revelando uma aparência de doença, desgraça e zombaria. Era muito obesa e repleta de feridas. Dava para ver que tinham arames farpados
rodeando alguns cantos, dando a entender que aquilo era domado por alguma coisa ainda pior.

Aquela cabeçorra enorme e virulenta se voltou para a menina que passou a se sentir muito leve e febriu. Ela pensou que seria devorada quando, sem aviso, se sentiu lançada novamente àquele vórtice espaço-temporal.

Novamente ela entrou na espiral do tempo e viu Universos inteiros nascendo e morrendo, numa velocidade impressionante. Via luzes de todas as cores dançando e formando estruturas e criaturas muito estranhas que, de repente, ficavam a espreita de outras mais simples, colaborando para alguma espécie de cadeia alimentar alienígena. Ela também viu muitos segredos e mistérios assombrosos que nenhuma língua que se tenha notícia é capaz de argumentar.

No fim de sua viagem através das existências, ela se viu em um grande corredor de paredes em cores metálicas e paredes de três metros de altura. Tudo era meio escuro, mas dava para ver bem a certa distância. Havia um silêncio tumular e um eco muito fácil que se precipitava só com o respirar.

Ainda muito assustada da viagem e daquelas cenas do abismo, ela caminhou muito devagar, quando começou a ouvir um barulho insistente que ocorria sempre em intervalos iguais. Ficou perturbada, mas  mesmo assim decidiu seguir em frente e localizar a fonte do barulho, já que talvez fosse a única coisa que podia fazer para sair de lá.

Ela seguiu o longo corredor tateando a parede. Quando passava por uma bifurcação, teve a impressão de ter visto um vulto. Como já estava numa situação de assombro, decidiu não dar asas à imaginação e seguiu a diante sem deter os passos.

Foi quando notou que os ecos de seus passos não estavam desacompanhados que ela decidiu dar um pique para se voltar para trás com certa segurança para ver o que vinha em seu encalço: e olhou horrorizada para uma forma humana fantasmagórica que a perseguia.

Embora tivesse silhueta humana, aquilo não parecia propriamente algo que pudesse existir. Era como se uma compilação de todos os vultos que a moça já tinha percebido pudesse se incorporar numa única forma; algo que os olhos humanos ainda não seriam capazes de atingir a percepção. Então, se parecia com nada e com tudo ao mesmo tempo, mas visto de relance: era sua mãe, seu irmão, o professor de matemática e o namorado. Até com o patrão se parecia.

Ela ficou aflita com aquela representação surreal que seguia seus passos a certa distância. Então, decidiu parar; e a coisa também parou. Ela ficou encarando aquilo por um tempo e notou que aquilo tendia a querer se esconder do seu canto esquerdo, tentando ficar próxima ao limiar de seu campo de visão. O suficiente para não ser inteiramente vista, mas sempre notada!

Foi com certa sensação de diversão que finalmente deduziu ser aquilo um vulto perdido. Era como um mímico, mas sem intensão própria. Só respondia quando ela o encarava, fazendo-o retornar a um ponto de vista que fosse ocultado, mas percebido.

Ela continuou a percorrer aquele túnel sombrio com o vulto desgarrado a lhe fazer companhia quando finalmente chegou à origem do barulho insistente: estava em uma rua vazia. Na sua frente, viu um mendigo pregando cartazes na parede.

- Não era para você estar aqui. - disse o mendigo.
- Com licença, desculpe, tem que me ajudar e-eu - começou a garota com voz de choro.
- Não falei de você! Falei dele! - apontou para o local onde o vulto deveria estar.

Nesse momento, ela teve aquela "sensação de vulto"; se lembrou dele e se virou: não tinha mais nada lá. Era só um vulto mesmo...

Ela se virou para o mendigo e... ele também desapareceu!

E a garota notou a brisa que começava a soprar, e os primeiros burburinhos da manhã (como uma certa carta que foi muito lida há pouco tempo, de alguém que não existe mais).

E foi assim que Isabela se livrou da inconsistência.

Ela pegou o metrô e foi para casa. Tudo voltou ao normal.

O vulto da biblioteca também se livrou da realidade e deixou a inconsistência.

Agora, os dois se encontram nos sonhos da moça e conversam sob suas experiências. Porém, agora, falando a mesma língua.

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