Faz 3 dias que
descobri o motivo de minhas sumidas noturnas. Me isolei num hotelzinho modesto,
mas bem limpo numa cidade do interior do Paraná. Peguei o primeiro ônibus que
pude e parti para um lugar em que não conhecesse ninguém. Por isso estou aqui.
Passei a fazer
coisas terríveis desde que tentei provar o charlatanismo por trás daqueles
rabiscos pendurados nas paredes da Rua Dr Gabriel Pizza, em São Paulo. Aqueles
de que andam falando tanto! Que trazem mal agouro a quem ousar terminar aqueles
cálculos infernais que ensinam as mentes sãs a ter seu cérebro devorado pelas
próprias ideias! Eu tentava ser mais esperto que os espertos e mostrar que eles
não passavam de delírio de algum fanático.
Tomava uma birita na mesma Gabriel Pizza quando decidi
arrancar aquele papel sujo da parede e esfregar no rosto dos meus companheiros
bêbados para mudarmos de assunto (eu temia que nos achassem maricas de sermos
vistos falando de assombrações e histórias para crianças). Comecei a zombar
daqueles pedaços de papel e a ler um trecho bem alto, em busca de algumas
risadas. Por fim, peguei um pedaço, esmaguei, pus na boca e virei com um copo de Conhaque que já tinha
começado a beber.
Na manhã de sexta,
passei a notar algo estranho. Eu estava a me levantar do quarto onde estava
para ir ao bar sustentar meu vício, quando notei indícios de que alguém mais
esteve no quarto durante a noite. Notei que o caminho da cama até a porta
estava grosseiramente revirado e meus chinelos espalhados, como se alguém que
tivesse caminhado no escuro os tivesse chutado sem querer, por não tê-los
vistos.
Pensei que era algum
credor que tinha vindo me colocar medo. Depois de consultar algumas pessoas
daquele amontoado de quartos embolorados que aprendemos a chamar de
"condomínio", vim a saber que o invasor era eu mesmo: tinha começado
a andar dormindo.
Foi só depois de me
certificar de que não era de fato uma invasão que sofrera é que notei pela
primeira vez aquele gosto horroroso de ferro na boca. Me sentia como que
tivesse posto na boca um daqueles canos de água sujos e enferrujados que
ficavam à mostra nas paredes mal rebocadas do cortiço e que viviam pingando.
Tinha também muita dor no maxilar inferior, como se estivesse aberto a boca
muito mais do que podia. Mas só dei a atenção que a situação merecia quando
achei, enfiada em minha mochila, uma trouxa feita de jornal. Dentro dela tinha
um cachorro vira-lata morto e murcho. Melhor dizendo, terrivelmente murcho.
Atônito, joguei fora
a mochila toda no primeiro terreno baldio que encontrei. Depois, tomei um banho
e tentei pensar numa explicação que não apareceu. Com certa vergonha, me
lembrei do pouco caso que fiz dos rabiscos misteriosos que fiz no bar e da
brincadeira pouco-higiênica de comê-los e fiquei com medo deles.
Voltei à rua do bar
em busca do restante dos rabiscos (antes eram inúmeros) mas cheguei justamente
naquele dia em que a prefeitura tinha removido todos... Depois decidi ocupar a
cabeça com outra coisa e continuar com meus bicos para garantir o aluguel do
mês e a birita do dia. É claro que não
pude. E para piorar, tive uma sensação horrível...
Durante aquele dia,
no coletivo, vi uma mulher dando de amamentar a um bebê bem pequeno. Nunca
desejei tanto um peito... eu ficava excitado em ver a criança chupando o peito
da mãe... de repente senti como se pudesse ouvir o barulho do sugar dele e, por
um instante, tive a impressão de ter visto um semblante de prazer sexual na
mulher e de malícia no canto da boca do bebê... Não era a maneira normal com
que um bebê humano costuma mamar. E, por um momento, achei que o bebê tinha
ganhado feições de adulto...
Essa passagem mexeu
tremendamente comigo. De súbito, parei de desejar chupar os peitos da mãe e
comecei a desejar cravar os dentes e a reduzi-lo a um bagaço, como se fosse uma fruta cheia de suco, exceto de que no
lugar do suco, era sangue...
Tive um pesadelo
terrível naquela noite. Sonhei que voltava àquele coletivo. Mas em lugar de
desejar a mulher, desejei desesperadamente sugar o sangue do bebê. Lembro-me de
cravar meus dentes na cabeça dele, como se fosse uma daquelas armadilhas feitas
para se caçar animais grandes. Devorei quase todo o crânio rosado daquela
criança. E, quanto mais sangue eu sorvia, mais o menino chupava. E não era
leite que ele mamava. Era também sangue da mãe...
Acordei pouco depois
de reconhecer, nas faces da mulher, o rosto de minha pobre mãe, da qual
abandonara ainda moleque para ganhar a vida. Acordei muito assustado e com medo
do escuro. Olhei no quarto para ver se notava algo estranho e logo congelei com
o que vi... Sobre minha cama, a meus pés, tinham outros dois corpos de cães
murchos. Um deles era tão grande que, a princípio, pensei que era o corpo de
uma menina. Partes das cabeças estavam tão estraçalhadas que era difícil
identificar imediatamente o quê eram.
Liguei a luz e olhei
para o espelho e, desesperado, me vi com o rosto molhado de sangue,
justificando aquele gosto tenebroso de ferro. Minha camisa, a calça, a cama,...
tudo! Tudo estava sujo de sangue e fedia a ferro! Não tinha mais dúvidas de que
tinha me tornado um vampiro dos infernos!!
Fiquei um tempo
catatônico. Ainda não sei dizer quanto tempo se passou entre o momento em que
me vi no espelho e quando lavei o rosto. Me lembro de que ainda estava escuro
quando enrolei a cama, a roupa, os cadáveres e tudo que cheirava sangue numa
trouxa bem grande e os despachei para o mesmo terreno baldio em que vivia agora minha velha mochila jeans azul.
Dormi o restinho da
madrugada no estrado da cama e, por incrível que pareça, dormi muito bem.
Acordei com muita fome e tentei fazer um desjejum de gente normal. Mas sentia um nojo por café, leite e tudo mais o
que tivesse um aroma mais característico. Foi quando percebi que só podia comer
carne.
Foi nessa manhã que
tive tempo para refletir um pouco. Lembrei dos cadáveres e me assustei ao
constatar que, em tão curto intervalo de tempo, aumentavam em quantidade e
tamanho. E me perguntava o que viria em seguida: um cachorro maior? Talvez...
UMA CRIANÇA???
Essa ideia me
assombra até hoje. Mais do que tudo. De repente, eu notava um padrão nas
vítimas. Parecia que, gradativamente, meu corpo estava se acostumando a vítimas
maiores. Até onde isso ia parar?
No cortiço viviam
algumas daquelas famílias que têm seis, sete ou oito filhos pequenos. Mesmo não
morando mais lá eu ainda entro em desespero quando penso no que podia
acontecer...
É por isso que lhe
escrevo esta carta, Dr Floriano. Tive conhecimento da sua ordem secreta e de
seus interesses nos assuntos que não interessam mais aos homens da ciência. Por
favor, não tente negar. Pois aqui escreve um homem desesperado. Todas aquelas histórias
românticas e glamorosas a respeito de vampirismo que os adolescentes gostam de
fantasiar; todas aquelas histórias que faz os vampiros parecerem britânicos
charmosos; que ficam jovens para sempre são balela... É uma coisa horrível. Não
desejo isto para ninguém.
Meus sintomas só
pioram: minha pele começou a descamar até mesmo com o sol ralo do final do
entardecer. Tenho medo de imaginar o que pode acontecer ao sol do meio-dia...
Estou um trapo. Já
perdi 5 quilos em apenas três dias... Tenho medo de comer, tenho medo de
dormir... Ainda encontro animais pequenos murchos no meio da madrugada. Já
existem boatos por aqui de um "chupa-cabras" que começou a atacar,
por isso já estou pensando em me mudar novamente. Sei que é uma questão de
tempo até eu começar a atacar pessoas. Por isso me afastei de todos que
conhecia.
E aquele gosto de
ferro.... ODEIO AQUILO! DETESTO ESSE GOSTO! Já exala pelos meus poros! Outro
dia eu passeava pela praça da Matriz numa daquelas festas que eles dão e já
percebi pessoas comentando. Não consigo me aproximar de ninguém. Temo quando
começarem a associar o cheiro com sangue.
Tenho sonhos
bizarros, doutor. Nem queira saber... Já sonhei que copulava com todos meus
entes queridos e que os degolava para lhes beber o sangue... Mas só tenho esse
desejo repulsivo nos meus sonhos. Mas o mais assustador é que acordo excitado!
Tenho muito medo de imaginar o que pode acontecer quando esse desejo também se
manifestar em meu estado consciente.
E para mostrar que
não estou mentindo, peço que procure pelo terreno baldio da Av Zachi Narchi.
Sei que é um pedido estranho para se fazer a um homem da sua categoria, mas
peço que entenda o desespero deste apelo. Lá você deve encontrar minha velha
mochila jeans azul e a trouxa ensanguentada que enrolei com sacos de lixo com
os dois cadáveres daqueles pobres cães.
Por favor, doutor,
não negue ajuda a este pobre condenado... Agora sei, de um jeito terrível, que
devemos respeitar as coisas que não entendemos. Por mais estranhas que pareçam.
Sei que fiz mal em debochar dos escritos daquela rua... Agora o que eu mais sonho
é em encontrá-los novamente... Me dedicaria a finco para interpretar aqueles
cálculos profanos, mesmo sabendo dos boatos (que agora sei que são verdadeiros)
a cerca de trazerem a loucura a quem ousar terminá-los.
Me responda doutor.
Não vou parar de escrever até pelo menos receber uma resposta sua me mandando
para o Inferno!!
J.P.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário!