A Sete Palmos

Estava suando em bicas, quando decidiu parar de contar quantas pás de terra já tinha removido. O outro descansava ofegante e aproveitava para espreitar se não vinha ninguém.

Contar era um alento, já que os dois já não pronunciavam nada há um bom tempo. E também algo para ocupar a mente, já que a hora não passava.

Trocar uma noite de gandaia por uma violando túmulo foi uma idéia que surgiu às pressas, ainda no velório do infeliz, não muito longe da pobre viúva que soluçava...

A má sorte deles começou quando os três se interessaram pela mesma garota Emília: linda garota de 19 anos que tinha fama de gostar de homens mais velhos. A conheceram na festa da igreja, no salão.

Nunca foram boas pessoas. Jarbas, o infeliz que agora vestia o paletó-de-madeira, tinha uma acusação antiga mal explicada de estupro durante os anos 90, da qual fora inocentado. Os outros dois eram recém frequentadores de uma ordem secreta da Capital que estudava magia negra e, para falar a verdade, não sabiam muito bem o que estavam fazendo... Sobreviviam na organização com suas mentiras cuidadosamente bem arquitetadas para mostrar aos demais que tinham posses e que, portanto, eram importantes à organização. Se interessavam muito mais pelos favores que podiam obter do que pelo culto (que faltavam com frequência).


Os dois planejaram executar um feitiço que faria com que a garota se tornasse a escrava sexual dos dois. Mas tinha um preço: precisavam executar um tipo de ritual que envolvia sacrificar um conhecido.

Ninguém gostava do Jarbas, a não ser ele mesmo. O sujeito vivia de bicos e de pequenos furtos que nunca se provavam sua autoria. Aparentava ter uns 50 anos, mas tinha 40. Parece que foi preso uma vez, mas ninguém tinha coragem de perguntar. Tinha cicatrizes de facadas que nunca eram explicadas e vivia com o cabelo despenteado e a barba por fazer.

Mesmo assim, era o pobre diabo que conseguira atrair a atenção da moça...

As duas raposas não sentiram remorso quando tramaram o assassinato ali mesmo, no salão da igreja. Não era a primeira vez que se envolviam em assassinato e, somando o fato de que Jarbas devia dinheiro a eles, não era uma decisão muito difícil para eles.

Usaram um dos poucos 3 feitiços que conseguiram entender das poucas cerimônias que compareceram. Basicamente, ele consistia em matar a vítima sem lhe tirar sangue, colocar um pequeno lenço que nunca foi usado no fundo da boca do defunto e trocá-lo por outros dois, de tempos em tempos, até que o relógio da Matriz marcasse 2 horas. (Também tinha uma parte que envolvia fezes de galinha, mas isso não acrescenta nada à narrativa).

Então, "batizaram" a bebida do desgraçado com um forte anti-depressivo (que tinha efeito sonífero) fazendo aquele homenzarrão despencar sem oferecer resistência. Foi a idéia de uma paroquiana colocar o rapaz num quartinho usado para guardar equipamento de festas para dormir sem ser incomodado. Assim, ficou fácil para os dois darem cabo do infeliz.

Ambos dançaram a festa toda e beberam todas. Quando a fatalidade veio a tona, ainda havia motivo para risinhos e planos, mas de repente, um deles se perguntou:

"Quantas vezes trocamos os lenços???"

Esse era um fator importantíssimo e eles não lembravam direito o que aconteceria se falhasse, só que era algo terrível. Um deles ainda se recordava das palavras do sacerdote sobre "morte" e "danação", mas não se lembravam do contexto. Se eles tomaram a decisão de fazer aquele ritual, era porque eles o levavam a sério. Então temiam muito as consequências se ele falhasse (talvez ainda mais do que o que ocorreria se fossem pegos).

Refizeram os passos e descobriram que só haviam trocado o lenço duas vezes até que o corpo fosse achado e causasse todo o alvoroço. Ainda faltava o último.

Por incrível que pareça, o funeral de Jarbas estava cheio. A viúva não parava de chorar e os dois amigos não paravam de arquitetar como chegar ao morto para terminar o ritual. Porém, o corpo nunca ficava sozinho!! Parecia uma última brincadeira do cretino que partia!

Eles nem se preocupavam mais com o que ganhariam em troca (a jovem Emília) mas só com o que podia acontecer. Certa vez, um deles ouviu de um político que frequentava o mesmo culto que uma pessoa teve um final trágico depois que um desses feitiços mortais não foi executado até o fim e da maneira prevista. Eles não eram muito crentes, só se preocupavam com a recompensa. Temiam os castigos, mas imaginavam que eles vinham muito mais pelos membros da própria seita (que era grande e estava disseminada pela sociedade e sempre acabava sabendo de tudo) do que por alguma entidade sobrenatural. Ainda mais porque um deles havia feito uma ligação para um dos membros do culto para relembrar do ritual, antes de decidirem tomar aquela decisão...

Depois de repassar os passos do cortejo até o cemitério umas vinte vezes, deduziram: só teriam oportunidade de trocar o lenço depois de Jarbas ser sepultado...

E é por isso que aqueles dois porcos fuçavam a cova de Jarbas àquela hora da noite...

E a pá gritava alto a cada vez que engolia mais um punhado de terra, e o suor jorrava dos poros da testa dos dois mais por medo do que pelo esforço... Fazia uma madrugada gelada e pensar no prêmio - a jovem Emília a mercê dos dois para sempre - não acalentava mais a alma dos dois ante das consequências de não conseguirem completar a etapa a tempo...

A certa hora da noite, um deles teve a impressão de que a terra "brotava" por mais que eles a cavassem e, percebendo isso, entrou em desespero e começou a chorar de forma contida. Mas mentiu para o outro para limitar o desespero para si, dizendo que aquilo era arrependimento por ter bebido demais e ter perdido a conta da troca dos lenços... Por isso, mesmo exausto, ele se pôs a cavar para tentar vencer a terra.

O coração dos dois bateu tão forte dentro do peito quando a primeira pá bateu o caixão que deu para esquentar o peito de tamanha emoção. O mais desesperado abandonou a pá e continuou a desnudar o caixão da terra com as próprias mãos e, numa questão de segundos, o caixão estava limpo e parecia nunca ter sido usado.

Então, abriram o caixão sem aviso e sem suspense, trocando aquele desespero por um pânico insano e intenso: o caixão estava vazio. Já faltavam quinze minutos para as duas da manhã e, não importava o que tenha ocorrido ou não, era muito tarde para agirem...

Enquanto isso, num certo bairro mais afastado de onde estavam, Emília tinha seu sono tranquilo abruptamente interrompido quando sentia um peso muito grande e gelado debruçar sobre seu corpo. Foi ainda desorientada e com muito sono que percebeu a visão horrenda do que já havia sido Jarbas deitando sobre ela e lhe imobilizando, vomitando um pano sujo esverdeado e tendo espasmos o tempo todo. Tomada de medo e impedida de gritar, ela sentiu um forte fedor de carniça vindo de sua pele podre lhe roubar aos poucos os sentidos quando percebeu que o demônio tentava lhe violentar.

E o lençol branco se enchia de terra que escorria do corpo morto de Jarbas, que pronunciava frases desconexas e de trás-para-frente.

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