A membrana e o código

É com grande consternação e espanto que uma pequena multidão se amontoava em torno da cama onde jazia Josué. Não só parentes e amigos, mas também médicos e homens da ciência desfilavam seus rostos tristes combinados a grandes sinais de interrogações em cima deles - não menos tristes.

Além de tristes estavam exaustos. Mas o que os esmagava não era só a tristeza e o cansaço, mas também a sensação de enorme impotência diante daquela batalha que era muito maior do que todos eles. Foi uma batalha dura. Se tivessem êxito, cada um deles poderia ter se gabado do feito, já que todos ajudaram. Cada um deles, desde o mais o humilde até o mais nobre. Se tivessem êxito, seria a prova cabal de que o trabalho em equipe funcionava! Desde o pequeno Francisquinho, que foi correndo trazer o paninho úmido para lhe baixar a febre, como o Dr. Floriano que, com todos os seus conhecimentos de psiquiatria e sua lista impressionante de especialistas nas mais variadas artes da medicina (e de outras ocultas também) encheu a casa com tantos profissionais que poucos hospitais podiam se gabar de ter.


O final previsível dessa história começou porque Josué era um sujeito tremendamente curioso. Tinha aquela mania besta de ficar colecionando tranqueira. Mas era muito carismático e, por isso, muitas pessoas ainda queriam ficar perto dele. Tinha aparência daqueles farmacêuticos do tempo de nossos pais e avós e era tão confiável que até as pessoas que o conheciam muito pouco o emprestavam dinheiro.

Foi num domingo de feriadão que Josué cruzou a Rua Doutor Gabriel Pizza, em Santana. E se deparou com aqueles rabiscos estranhos que ficavam pendurados nas paredes e postes, feitos pelos mendigos que perambulavam pela rua. A cidade estava deserta. Parecia que até os mendigos tinham ido para a praia...

Josué ficou muito impressionado com uma série de rabiscos feitos com lápis azul: eles começavam com uma fórmula matemática complicadíssima e terminavam em uma frase. Sim, uma conta matemática, cujo cálculo resultava em uma frase!

A maioria das pessoas, se vissem o rabisco, deduziriam ser fruto de um delírio provocado por uma cabeça cheia de álcool. Ele não aparentava ter uma lógica comum, mas Josué ficou obcecado. "Tem que ter uma lógica!" - ele pensava.

Levou a maior parte dos rabiscos que julgou estar conectado àquele. Então, se pôs a estudar a lógica daqueles cálculos para chegar na frase final.

Josué era solteiro e nunca foi muito namoradeiro. Então, tinha tempo...

Ele ficou um bom tempo assim: fazendo cálculos. Ficou maltrapilho, perdeu peso. Começou a dormir muito mal e passou a faltar com os compromissos. Foi um companheiro que trabalhava no mesmo açougue que primeiro notou uma pequena pele aparecer em seu rosto...

"Não é nada! É da idade!" - Josué era assim: nunca perdia a cabeça. Nunca discutia, era sempre plácido. Mas tinha um problema sério: nunca ia ao médico.

Os dias foram passando e Josué piorando. Até que, num dia, machucou feio seu dedo na máquina de cortar mortadela e tirou licença...

Ficou uma semana afastado. Nesse tempo mal comeu. Mal dormiu, mal falou com ninguém. E aquela pelezinha se tornou uma grande bolha que nascia na testa e terminava um pouco para baixo da bochecha esquerda...

Ele mal ligava para aquilo, por mais que coçasse. Por mais que ficasse maior,  por mais que parecesse feia. Por mais que expelisse uma pequena quantidade de pus perto da orelha...

E Josué passou os dias assim, debruçado em cima daqueles rabiscos. Julgava ter decifrado a metade daqueles cálculos insanos. Julgava estar decifrando alguma mensagem cifrada por um mago, uma grande mensagem para toda a humanidade! Um segredo inconfessável, destinada apenas aos escolhidos!

A medida que aquilo piorava, Josué começava a ter alucinações...

Ele via uma linda mulher com a pele clara, lindos cabelos sedosos e corpo escultural. Passou a imaginar que ela morava com ele. Ela andava sempre nua pela casa e comia sempre a mesma maça que, de maneira sobrenatural, nunca terminava de ser comida...

Ela o incentivava a continuar a decifrar o "código". Era muito importante! E, sempre que Josué se sentia cansado, infeliz e incapaz de decifrar o código, ela prometia premiá-lo com uma noite de sexo intenso...

E, com o tempo, a pelezinha foi aumentando... e, logo, se tornava uma grande membrana horrorosa que já chegava a lhe cobrir um dos olhos e metade da boca...

Josué ficou tão recluso que os amigos começaram a notar. Sua licença pelo corte do dedo se prolongou muito além do esperado e isso chamou a atenção.

Os amigos foram lhe visitar e o acharam deplorável. O curioso é que ele não tentava espantar as pessoas. Fazia questão de lhes falar do "amor de sua vida", de sua "promessa" e sobre como ela lhe ajudava a decifrar "o código".

Passaram poucos dias até que aquela membrana terrível lhe cobrisse todo o rosto. Teve grande febre e ficou impedido de se alimentar. Os amigos foram muito solidários e, logo, eram muitos. Todos cuidando dele da forma como podiam. Uns traziam comida, outros médicos. Os mais próximos tentavam manter o nariz e a boca abertos, mas logo a abertura infeccionava e se enchia de pus e sangue novamente. Logo, aparecia uma membrana ainda mais grossa, pustulenta e mais difícil de tirar.

Em pouco tempo ele definhou. E morreu em casa muito fraco, mas cercado de amigos. E de amigos de amigos. E daqueles papeis cheios de rabiscos - estranhamente surrupiados mais tarde pelo Dr. Floriano...

Entre eles haviam folhas de almaço feitas por ele. Tinham cálculos começados, mas interrompidos. No início eram iguais aos dos rabiscos achados, mas depois tomavam outros rumos. Não se sabe se por uma brilhante lógica, ou por pura fantasia, aqueles cálculos estavam chegando ao mesmo resultado dos que tinham nos rabiscos - os quais ele julgava estar incompletos e cujo término revelaria um segredo incrível, guardado à sete chaves. Porque só a palavra "VERDADEIRO" do original "O VERDADEIRO CAMINHO DO ÉTER" ele havia conseguido chegar, entre cubos e outras fórmulas geométricas.

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