A pior coisa do mundo (parte 1 de 2)


Joaquim, Inácio e eu nos encontramos certa vez em um bar, a pedido do primeiro, para tratar de um assunto que poderia trazer alívio para todos os nossos corações. Nós três fomos diagnosticados com um terrível tipo de doença que nos reserva poucos meses de vida. Nosso infortúnio, igualmente nos tira o sono e o sossego de nossos familiares, uma vez que ficamos amargos e pessimistas. Nos conhecemos num grupo de apoio à vítimas do mesmo mal e nos identificamos logo de cara. Assim, dividimos nossas frustações e aprendemos a conviver com elas.

Joaquim esteve um tempo afastado. Esteve frequentando uma estranha religião que não sei bem se lhe cabe esse nome. Ele trazia novidades: dizia que tinha aprendido muitas coisas secretas e veio com uma história inacreditável e idealista. Já que íamos fatalmente morrer em poucos meses, queria que sua vida tivesse valido a pena e nos propôs o absurdo: queria destruir o que chamou de “a pior coisa do mundo“, para acabar com o sofrimento da Humanidade.


Achamos uma piada! Mas Joaquim estava muito sereno em sua colocação. Ele não falava na sua nova religião e isso lhe conferia certa credibilidade, diferente da maioria dos recém-convertidos em seja lá o quê. Ele era um homem de poucas palavras, então nos chamou muita atenção aquele argumento todo. Ele insistia em classificar a “pior coisa do mundo“ como se fosse uma pessoa. Razão pela qual passarei a transcrever de forma a guardar o máximo de fidelidade com a forma com que ele se referia ao dizer “a-pior-coisa-do-mundo“, porque carregava muito peso e angústia, do jeito que ele falava.

Nos permitimos levá-lo um pouco mais a sério. E Joaquim começou a recitar feitos delirantes que teriam sido realizados por dois anônimos e descritos em uma série de livros e estudos científicos. Ele citava aquelas passagens como se fossem lidas em alguma revista de curiosidades ou em algum documentário raro e pouco assistido. Demorei a perceber que faziam parte das crenças de sua religião porque os relatos não guardavam nenhum traço de cristianismo, catolicismo, protestantismo ou de quaisquer outros “ismos“ que se prese. Pareciam ter saído de algum videogame confuso e muito comprido.

Tratava-se de duas pessoas que, em momentos distintos da História, fizeram uma viagem a um tipo de dimensão classificada como “éter“. O termo certamente é mais antigo porque aparece tratando da mesma coisa em toda a literatura desses dois autores. Ou tem relação com o termo usado pelos filósofos do mundo antigo para descrever a substância que permearia o Universo, preenchendo os espaços vazios. A princípio, pensei se tratar de um erro de interpretação do pobre Joaquim, mas depois conferi que tudo o que está escrito sobre esses dois os referenciam por meio de duas abreviações: “S.“ e “V.“. Ambos, cada um em sua época, teriam estabelecido leis e regras, além de ter traçado cruzamentos entre o éter e os sonhos que temos quando dormimos. Não se sabe ao certo, mas um deles foi o primeiro a sintetizar a substância conhecida comercialmente como “Pronofol“.

“S.“ dedicou pelo menos três estudos inteiros só para descrever as relações e reflexos que o mundo real e o éter estabeleceriam. O éter se assemelharia a uma bizarra e, muitas vezes, subjetiva expansão do mundo real. Muitas vezes, esse mundo está conectado aos sonhos e o termo se confunde através de toda sua literatura, ficando muito difícil distinguir onde termina um e começa o outro. Os autores têm dificuldade em definir o que é o éter. A definição mais antiga é a do primeiro estudo de “S.“ que afirma se tratar de “um reino expandido da realidade, de medida infinita, onde não existe ordem, mas onde impera algum tipo de inteligência maligna e indefinível“. “V.“, por sua vez, o classifica em seu estudo intitulado “O País dos Demônios“ como sendo “uma vasta terra seca em constante construção, remendada por pedaços de pesadelos e habitada por criaturas dementes. Ligada ao plano real por trechos de realidade inconsistente, ou espalhados por meio de sonhos ou de espaços geográficos resultantes de falhas na estrutura do real“.

“V.“ focou o estudo dessas criaturas chamadas “dementes” que habitariam esse lugar. Afirmava que eram abominações que quase sempre tinham conexão com ditos “vícios” praticados no mundo real. Chegou a categorizar que se deparou pessoalmente com a ganância. A qual descreveu como sendo “uma grande centopeia humana, formada por um emaranhado de coisas obesas e doentes que, mesmo ciente da própria doença, se dedica em aumentar ainda mais de tamanho, fundindo e devorando outras criaturas de outras espécies menores ao enorme corpo em constante colapso”.

Existem outras descrições de corporificações de vícios no éter. Ainda segundo “V.”, os mundos estariam tão interligados que, se fosse possível estudar e até destruir certas dessas bestas, talvez fosse possível reparar os defeitos de nosso mundo.

Chamou muita atenção de Joaquim – e creio que também de muita gente que frequenta seu culto – a última declaração do mesmo "O País dos Demônios" a cerca do relato de “V.” sobre uma criatura que bate muito bem com a que também descreveu “S.” em seu “A Origem da Loucura” cerca de 40 anos antes. Tratava-se de uma cabeça titânica de quase dois quilômetros de largura que viveria acorrentada em um abismo de profundidades colossais e que se alimentada de bebês, atiradas pelas próprias mães. “V.” chamou essa criatura como “a-pior-coisa-do-mundo”.

Depois que ouvimos essa história de Joaquim, o efeito do álcool da bebida perdeu completamente a graça... Joaquim achava que se destruísse a-pior-coisa-do-mundo no éter, seria possível colocar fim no sofrimento do mundo real. Inácio foi o primeiro sensato a colocar dúvida na lucidez de nosso amigo. E o fez sem deboche, mas usando a lógica. Começou a investigar cada palavra e cada frase de Joaquim até achar alguma resposta que entrasse em contradição, mas não obteve êxito. Naquela mesma noite, Joaquim nos convidou a dar uma olhada no porão do templo de seu culto para nos oferecer uma prova de que seu relato tinha razão de ser.

Inácio e eu estávamos muito impressionados com a história de nosso amigo, mas permanecemos relutantes em aceitar o convite. Ele insistia que, depois de vermos o que tinha para mostrar, mudaríamos nossa compreensão de tudo o que conhecíamos. Que as aulas de Física e Matemática que temos nas escolas e até nas Universidades não eram mais do que garranchos toscos vindos de macacos que mal tinham aprendido a dominar o fogo perto de toda a imensidão do desconhecido que iríamos experimentar.

***

Arrombamos um portão de ferro de um estacionamento vizinho e entramos como se fôssemos ladrões de carro. Eu estava ficando puto com aquela história! Mas Inácio sentia uma esperança perigosa naquela empreitada... Eu já tinha me acostumado com a perspectiva da morte iminente, diante de nossa doença e tinha aprendido a manter a cabeça fria. Qualquer tipo de esperança era uma droga amarga demais para caras como nós suportar... Mas a primeira coisa que aprendemos no nosso grupo de apoio é que não devemos jogar uma pá de cal em cima de esperança nenhuma. “Combater a depressão é o caminho mais seguro para prevenir a demência“ - tinha aprendido rápido essa lição, depois que o próprio autor dessa frase se matara, a exatos dois meses do prognóstico médico para sua enfermidade.

Atravessamos alguns carros abandonados e chegamos a uma casa onde acontecia o culto, fechada àquela hora. Entramos por uma janela baixa que não era difícil de abrir. Existia uma claridade vermelha vinda de um canto oculto, por detrás de uma prateleira velha (acho que tinham caixas de sapato delas). Atravessamos num silêncio perturbador, por ordem de Joaquim até virarmos a esquerda em uma pequena área de serviço.

E foi a primeira vez naqueles dias que engoli em seco: deitada em uma tábua de passar, jazia uma criatura humanoide muito estranha que tinha feições equinas.

Haviam feito um circulo de giz em volta da maca por algum motivo místico. Os olhos da criatura não tinham pálpebras e emanava um brilho vermelho fosco que parecia perder a intensidade com o passar do tempo. Tinha a pele igualmente vermelha e a altura bem maior que a média das pessoas. Estava morrendo.

“Se materializou do nada. No meio de nosso culto“. Lembrou Joaquim. “Acho que fizemos isso com nosso cânticos, mas é certo que veio do éter. Três homens precisaram dominar a fera que estava descontrolada e ameaçava devorar o braço de um outro homem“.

Olhei para bem para aquilo... era terrível! Não era para aquele tipo de coisa existir! Não podia! Era como se um homem tivesse a cabeça de um cavalo dos infernos! Imaginar aquilo se mexendo e relinchando era enlouquecedor! Mas então, olhei para Inácio que, de cara, sacou o que se passava em minha cabeça... aquelas histórias que ouvimos mais cedo no bar daqueles dois exploradores S. e V. tinham que ser verdade! E o que mais resta a dois moribundos que já têm o bilhete de volta carimbado tão cedo? Escolher estourar os miolos num momento em que a hora estiver chegando em vez de escolher combater a demência?

Plenamente ciente da loucura que aquela decisão significava, levantei a cabeça e enchi o peito para falar “Joaquim, nos leve a esse ‘éter’ e nos mostre a tal ‘pior-coisa-do-mundo’ que estes amigos moribundos teus te ajudarão a livrar o mundo dela!!!“

Eu me dirigia à porta quando, sereno, Joaquim me segurou pelo braço e me respondeu:

- Então pegue uma pá, porque vamos ter que cavar.

(continua...)

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