Conheci Joaquim e Osvaldo há poucos meses em um grupo de
apoio para pessoas com minha mesma doença terminal. Embora nós três pareçamos
bem, temos poucos meses de vida.
Mesmo assim, parece que os conheço há décadas.
Joaquim esteve sumido. Quando reapareceu, veio contando
sobre um culto que passou a fazer parte. Dizia muitas coisas que, na época, não
faziam sentido. Nos contou conhecimentos secretos sobre uma espécie de
realidade paralela que era feita por remendos de pesadelos chamada de “éter”. Agora
sei que não existe forma adequada sobre como chamar esse lugar. Nos contou
também um cem número de coisas que dois exploradores fizeram na tentativa de
estudar esse lugar e também o mundo dos sonhos. Esses dois eram chamados só
pelas iniciais “S.” e “V.”. Osvaldo ficou tão impressionado com essas histórias
que decorou parágrafos daqueles delírios todos (que agora sei que são reais).
Me chamo Inácio e, para resumir, sou um sujeito prático e
direto ao ponto. Infelizmente, nem toda a praticidade e bom senso do mundo me
preparou para a aventura que estou relatando. Se você perguntar ao Osvaldo o
que aconteceu do ponto de vista dele, tenho certeza de que este relato teria
algumas páginas a mais. Mesmo assim, ele não seria digno da experiência por que
passamos.
Joaquim era um sujeito caladão. Quando reapareceu, nos
convidou para uma empreitada por esse “mundo místico”. Osvaldo gosta de chamar
o novo culto de Joaquim de “religião”, mas não tem nada a ver. Acho que está
mais para uma sociedade secreta. Joaquim queria que nós os acompanhássemos em
sua jornada pessoal para assassinar uma criatura imensa chamada de
“a-pior-coisa-do-mundo”. Segundo suas crenças, o éter seria povoado por vícios
e desgraças humanas, personificadas em aberrações. Ele achava que destruir
“a-pior-coisa-do-mundo” eliminaria o sofrimento do mundo. Deduziu que, como nós
três tínhamos meses de vida, seríamos as pessoas certas para aceitar a tarefa.
Assim como você que lê este texto, eu também achava uma
história difícil de engolir. Tentei de todas as formas achar uma contradição no
que eu achava ser um delírio de uma mente que tinha dificuldades de aceitar o
fim iminente. Mas Joaquim nos convenceu a visitar o porão de seu culto para nos
mostrar uma coisa horrível que me daria vontade de vomitar só de lembrar,
exceto por ter visto coisas muito piores, como essa tal pior-coisa-do-mundo.
Era um homem que quase dava para chamar de gigante (tinha pouco menos de dois
metros e era muito forte) que tinha uma maldita cabeça de cavalo. Segundo
Joaquim, aquilo foi conjurado durante o culto e atacou um homem. Quando o
vimos, já estava morrendo.
Não sei de onde Osvaldo tirou a ideia de que eu havia
consentido em ele falar por mim para aceitar aquela viagem ao desconhecido. Mas
depois que ele disse “Joaquim, nos leve a
esse ‘éter’ e nos mostre a tal ‘pior-coisa-do-mundo’ que estes amigos
moribundos teus te ajudarão a livrar o mundo dela!!!” não me adiantei em
negar. Me pareceu um daqueles momentos anti-clímax em que é melhor a gente
ficar quieto. A verdade é que mesmo vendo aquela coisa deitada na nossa frente,
nunca pensei que aquela viagem fosse mesmo dar em algum lugar. Aliás, até hoje
Osvaldo pensa que eu realmente consenti com a cabeça quando questionado. Acho
que se eu não tivesse bebido tanto teria mais força de espírito para rejeitar
aquela sandice.
Joaquim nos deu uma pá e encheu umas mochilas velhas com
algumas provisões e também com alguma tralha tipo “ocus-pocus”. Tirou um pedaço
do assoalho do chão que revelou uma espécie de “porão do porão” que também
funcionava como fundação da casa. Havia um grande buraco que ele já tinha
começado a cavar. Cabia uns 3 homens lá. Haviam alguns rabiscos de giz envolta
dele e ele se pôs a falar. Ele não parecia nem um pouco bêbado e levava consigo
muita coisa para escrever e alguns livros. Começou então a nos advertir sobre
um monte de coisas que eu não prestei muita atenção. A única de que me lembro
era que aquela não era a única forma de se chegar àquele inferno deles, mas que
era a mais segura. As outras envolviam o uso de drogas pesadíssimas e que, por
nós não sermos habituados àquilo, nem ter o domínio adequado do sonho lúcido,
eram muito perigosas.
Cavamos um tempo. Acho que uma hora. A cada cinco braçadas,
Joaquim fazia rabiscos em seus cadernos e desenhava semicírculos por trás de
nós com giz - espantosamente perfeitas - à mão livre. Ele anotava alguns
números e consultava muito o relógio. Quando completou a hora a que me referia,
olhei para o começo do túnel e vi que ele estava sobrenaturalmente longo! Não
era possível termos cavado tanto. Não cavávamos só para baixo, cavávamos para
baixo e para frente. Com o auxílio de uma bússola estranha, que certamente não
era só uma bússola, Joaquim nos guiava sobre que ângulo cavar. A certa altura,
colidimos com uma parede lisa. Ele nos mandou parar e nos instruiu a fazer a
primeira esquisitice da viagem: era para passarmos talco e pó de café em nossas
têmporas, na testa, na jugular, nas axilas e nas partes íntimas. Disse-nos isso
e nos inquiriu umas dez vezes se fizemos mesmo. Disse que era para disfarçar
nossa presença para as abominações daquele mundo.
Então, com os cabos das inchadas invertidas, batemos contra
a parede lisa e a quebramos muito facilmente. Era como se quebrássemos um ovo
de páscoa gigante. Ainda antes de entrar, Joaquim insistiu que devíamos fechar
os olhos e entrar com eles assim. Também a pedido dele que demos as mãos e
entramos todos juntos. Depois de entrar, pediu a Osvaldo que lesse as horas.
“Duas da manhã”, ele respondeu. Em seguida todos nós abrimos os olhos. “Não
ficamos tanto tempo cavando assim!” Joaquim me explicou que, no éter, sempre é
duas da manhã e aquela era a forma mais adequada para se saber se chegamos.
Estávamos num túnel escuro e dava para perceber que todo ele
era polido. Dei um tapinha na parede e notei que ela não era tão fina como a
que entramos. Eu estava confuso. Permanecemos parados enquanto Joaquim mexia na
mochila. Ele tirava três pranchetas com papel e caneta. Nos fez responder
algumas perguntas bobas e, então, trocamos de prancheta. Era para saber se não
tínhamos “pirado da batatinha”. Então, em determinado intervalo de tempo,
fazíamos aquelas perguntas e conferíamos as respostas, como os mergulhadores
fazem. As perguntas eram tipo “qual é o nome da sua mãe” e “qual é o seu nome”.
Era bizarro você notar um túnel polido perfeito atravessando
um buraco que você mesmo cavou. Minha cabeça girava. Joaquim dizia que era
normal, mas ficava repetindo nosso nome de um jeito incômodo sempre que dirigia
a voz para você. Parecia que tentava fazer um cachorro aprender o próprio nome,
mas acho que fazia parte dos exames para perceber se você ainda estava lúcido.
Andamos alguns metros e viramos à esquerda. Perdi o fôlego
quando avistei a primeira imagem onírica da viagem: um corredor imenso, de
paredes arredondadas, cruzando o nosso e seguindo em um horizonte misterioso e
sinistro, de onde emanava uma luz esverdeada. A direção que esse corredor
tomava também era curva.
Não precisávamos mais de lanternas, dava para ver muita
coisa. As paredes estavam repletas de desenhos e escritas estranhas. Haviam
passagens desenhadas, principalmente no teto, que lembravam ilustrações muito
antigas que só vemos em cartas de tarô. E cada ilustração era imensa. Dava até
medo de olhar para elas porque, por estar tão altas e ser tão grandes, ficavam
mais escurecidas porque não conseguiam ser plenamente atingidas pela luz e
pareciam ainda mais sinistras.
Joaquim não tardou em nos mandar parar e repassar as
perguntas do questionário. Osvaldo estava eufórico! Acho que por isso seu
questionário foi repassado duas vezes. Joaquim fez uma advertência que me fez
esquecer por um instante de que sou um adulto (porque me deu medo). Ele
sussurrava as palavras e o fazia com uma urgência um pouco desmedida (porque
não tinha ninguém ali!). Dizia que a gente não devia se apegar àquele lugar.
Não éramos naturais dali e, portanto, não deveríamos achar que aquilo era real.
Que aquele era o caminho mais rápido para perder a razão. Nos fez repetir mais
de uma vez que era para seguir rigorosamente o que ele nos pedia e começou a
palestrar sobre como o éter é construído a partir de pesadelos aleatórios.
Enfim, seguimos em direção à luz esverdeada.
Foi Osvaldo quem comentou que o corredor se parecia com um
templo e que as gravuras podiam estar contando uma história. Joaquim só
resmungava que não era para a gente ficar estudando esses detalhes, porque eram
fragmentos de pesadelos. E, como tal, são dissimulados e só servem ao propósito
de prender quem os protagoniza e os torturar. Aquela advertência tornou tudo
muito mais atraente e foi aí que comecei a prestar atenção nelas. Ficavam cada
vez mais elaboradas e bem feitas. Comecei a reconhecer fotos antigas, num
primor artístico de tirar o chapéu. Aos poucos, elas foram ficando cada vez
mais parecidas até conter um único semblante de um menino triste olhando para
frente.
Comecei a ficar com medo. As ilustrações eram imensas. Foram
feitas para fazer você se sentir oprimido. De repente, parecia que o menino
estava olhando para mim. E só para mim. E seu semblante de tristeza ganhava um
sorriso oculto de malícia, parecido com o que tem a Mona Lisa. Como se ele
soubesse de uma coisa que eu não sei. Todo mundo estava vislumbrado com todo o
cenário, mas ninguém falava nada. Comecei a temer que era só eu quem estava
vendo aquelas coisas e comecei a torcer para que Osvaldo tecesse algum
comentário a respeito para que eu não fosse o primeiro. Mas Osvaldo não falava
nada.
Olhei para trás. Cara... estava muito escuro! Como a
escuridão podia comer tão rápido aquela luz esverdeada? Não podia! Aquilo não
era normal! E, de repente, assustei todo mundo – e a mim também – dando um
chilique daqueles!... Vi que três daqueles homens com cabeça de cavalo nos
seguiam calmamente e, de repente, se cobriram na escuridão para fugir na minha
vista.
Joaquim imediatamente lançou a lanterna naquela direção e,
como adoram as assombrações, nada se viu. Eu estava em pânico e soando muito.
Fiquei com muita vontade de desmaiar e falta de ar. Assustei muito a ele que me
colocou sentado (quase me atirando ao chão), examinou minhas pupilas e me deu
água. Depois, pegou o giz, fez seus “semi-círculos-bizarramente-perfeitinhos-feitos-à-mão-livre-sem-a-ajuda-de-nada”
em minha volta, me fez trocar de camisa e me deu mais um banho de talco e pó de
café. Depois, pediu minha prancheta que estava com Osvaldo e repassou o
questionário.
Eu estava mais calmo e, como tal, morria de vergonha de ser
o elo fraco da corrente. Mas comecei a perder a calma à medida que aquelas
perguntas repetiram umas cinco vezes! Vi o rosto de Osvaldo perder totalmente a
cor em uma dessas rodadas o que me deixou com mais medo. No final, quando notei
que o pânico abandonava o rosto de meus amigos, ainda me mandaram responder
umas contas de matemática bem infantis.
Parece que errei muitas vezes as primeiras perguntas do
questionário. Não quiseram me dizer o que foi que respondi. – Até hoje Osvaldo
se recusa a comentar minhas primeiras respostas.
Quando nos recobramos do susto, passamos por uma galeria repleta
de estátuas e quadros. As imagens nas paredes e teto voltavam a ser parecidas
com as do tarô (e parei de prestar atenção a elas). As estátuas, em sua
maioria, eram estranhas carrancas. Mesmo evitando ao máximo, dei uma olhada
neles, depois que o próprio Joaquim notou que eram todas repetidas. Joaquim
notou que todos os quadros eram “Independência ou
Morte” de Pedro Américo. Eu já vi esse quadro no Museu do Ipiranga
uma vez, porque passei a morar perto. Osvaldo fez uma observação de que seu pai
tinha uma cópia na casa dele. Então, sobre uma plataforma elevada vimos um
busto e embaixo estava escrito “ao homem mais avarento do mundo”. Ouvi um grito
de Osvaldo vindo atrás de mim “É MEU PAI!!!”.
Joaquim teve uma reação ágil e inusitada: veio correndo e
saltou sobre Osvaldo e lhe cobriu o os olhos, obrigando que tapasse os ouvidos.
Ele sabia que o lugar conspirava para acabar com a gente.
Fiquei um pouco afastado, não tinha me recuperado do susto
que sofrera e tinha medo de ver algo que não quisesse. Vi Joaquim sussurrar um
monte de coisas no ouvido dele e assumir uma expressão muito tensa. Olhei de
volta para o busto e não vi mais o busto de um homem. Mas o rosto esculpido do
mesmo menino que estava nas imagens colossais que via anteriormente e estava
coberto de chagas e feridas. Enchi-me de coragem e lancei o cabo da enxada que
ainda trazia conosco no busto, o deslocando de seu descanso e o estilhaçando em
milhares de pedaços no chão. No mesmo instante, ouvimos um grito estridente do
caminho de onde vimos e depois mais nada. Senti que estávamos em uma calmaria,
mesmo em meio às trevas. Joaquim repetiu o mesmo questionário com Osvaldo que
passou sem problemas.
Prosseguimos alguns passos pela galeria e nos mantivemos em
silêncio. Acho que, no íntimo de cada um, nos arrependíamos naquela viagem.
Joaquim de ter nos convidado e nós de ter aceitado. Joaquim, que ia a frente,
fazia letras e números estranhos no chão. E, à medida que avançávamos, mais
itens estranhos preenchiam a galeria. O quadro da Independência do Brasil não
se repetia mais desde que eu quebrara o busto. Mas agora as esculturas traziam
de tudo: eram fuscas estraçalhados em algum acidente, eram manequins de modelos
de passarela com cortes transversais e vítimas de tortura no momento de maior
agonia. Havia também figuras horrendas de tortura sexual, todas devidamente
etiquetadas. A pesar de nosso silêncio, Joaquim repetia sem olhar para nós que
não devíamos deter nosso olhar para essas coisas para não pendermos para a
loucura novamente.
De repente, Joaquim escreveu alguma coisa no chão e parou,
esperando alguma coisa. Ele se sentou e ficou olhando para sua psedo-bússula.
Às vezes, apagava alguma coisa e trocava por outra. Então, se virou
abruptamente para a direita e aguardou. Havia um arco naquela direção, de onde
parecia partir outros corredores menores. E ouvi o choro mais terrível que já
ouvi.
Avistamos uma coisa tenebrosa de pouco mais de dois metros.
Era uma criatura formada por um amontoado de carne e músculos de onde saiam
dois corpos em “V”. Um deles era um homem e o outro uma mulher. Tinha duas
pernas prodigiosamente fortes, mas seus músculos estavam todos errados. Era um
show de desproporção. Aquilo andava carregando um bebê. E era um bebê lindo,
humano, perfeito.
A criatura chorava um choro quase tão horrendo como ela.
Começava com um coro das duas cabeças dissonantes, mas às vezes, atingiam a
ressonância e parecia uma sirene urgente e triste. E abriam muito a boca para
chorar. Pessoas comuns teriam que quebrar seus maxilares para reproduzir a
elasticidade que atingiam.
Acompanhamos de longe a criatura cruzar o corredor. Ambos
ficamos com medo de questionar Joaquim. Acho que foi ele quem provocou aquilo.
Mas aquilo não estava em nosso encalço. Seguia seu próprio caminho.
Joaquim se borrifou da mistura talco-café e fizemos o mesmo.
Depois, tocou nosso braço sem falar nada para subirmos por outro arco oposto
àquele por onde seguia a besta. Só que, nesse, havia uma escada. Cada degrau
devia ter sido projetado para as proporções da criatura, já que cada degrau era
muito alto. Subimos um colosso deles até atingir um peitoral.
Olhei para baixo. “Não podíamos ter subido tanto!” Nossa,
como estávamos alto! E avistamos aquela mesma besta carregando seu bebê se
juntando a uma horda imensa de outras carregando seus bebês lindos e rosados.
Havia milhares! E todas choravam aquele choro terrível.
Nos adiantamos para um outro peitoral que estava há uns 20
metros de distância e parecia que dava destaque para alguma coisa.
Havia um abismo imenso! Acho que tinha quilômetros de
largura! Era tão fundo e largo que você se sentia atraído a ele. Dava vontade
de se jogar nele, sério! Você podia sentir uma corrente de ar bem leve passar
por você e fazer uma curva sobrenatural para se dirigir para sua garganta.
Vi uma fileira daquelas coisas chorando se posicionando a
beira do abismo. Havia, em destaque, uma mulher normal sentada chorando muito,
desconsolada. De repente, senti que alguma coisa terrível vivia no fundo do
abismo e que estava para surgir.
Uma cabeça titânica quase do tamanho do abismo emergiu.
Apresentava correntes e arames farpados presos em feridas que impediam que ela
saísse totalmente. Estava tomada de feridas abertas e cicatrizes. Não
apresentava cabelos, mas era parcialmente barbada. Era uma cabeça masculina,
doente e obesa. Lembro-me que um dos olhos não se abria totalmente, parecia
cego.
O semblante mudava o tempo todo. Mostrava raiva, soberba,
alegria, zombaria e arrependimento. Depois, repetia todas novamente.
As criaturas que carregavam os bebês começaram a atirá-los
no precipício que eram devorados pela cabeça titânica que, agora, parecia ter
orgasmos. E eu soube naquela hora que olhava para “a-pior-coisa-do-mundo”.
Joaquim olhou muito sério para nós e pediu que nos
sentássemos um momento, sem ter a visão daquilo. E nos lembrou do que disse
“V.” em um de seus livros, sobre como algumas criaturas do éter representam
vícios de nosso mundo. Começou uma despedida estranha, dizendo que já tínhamos
contribuído com o que ele precisava para chegar até lá e que lhe cabia agora
acabar com a criatura.
Nenhum de nós – acho que nem ele – acreditava mesmo que fosse
páreo para uma coisa daquele tamanho. Ainda que fosse, eu não saberia nem por
onde começar... Era tão grande que parecia se mover em câmera-lenta de tão
colossal. Vi que Joaquim prendia alguns itens místicos na cintura e uma espécie
de faca.
Nos entregou um vidro de terra e nos explicou que era terra
que cavamos no começo de nossa viagem. Explicou que, para voltarmos, era só
quebrar o vidro e cheirar bem forte seu cheiro. Por ser uma coisa genuinamente
real, voltaríamos.
É claro que questionamos dezenas de vezes se era preciso seu
sacrifício. Ele repassou inúmeras vezes sobre nosso infortúnio que iria nos
matar em meses. Sentia-se sozinho depois que perdeu a esposa e não podia nem
mais um minuto continuar a viver. Disse que tinha sido um mau marido em sua
vida e que havia prometido isso à esposa em seu leito de morte.
Nos fez prometer que quebraríamos o vidro para sairmos logo e
deixá-lo ali. Antes de obedecer, dei mais uma olhada no abismo para vislumbrar
“a-pior-coisa-do-mundo“ e finalmente entendi aquela alegoria sobre a
personificação dos vícios do mundo que algumas criaturas do éter representariam.
Por que ali, devorando os bebês que eram atirados pelas criaturas, identifiquei
muito claramente uma porção deles: o machismo, o autoritarismo, a escravidão, a
exploração infantil e a nostalgia, só para citar alguns.
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