Conversa com Nonomon

Não é de hoje que concordo com muita coisa que Nonomon pensa dos homens. Mas a última conversa que tivemos mostrou que não sei nada sobre a natureza que realmente controla nossos instintos e que é responsável pela nossa felicidade ou nossa desgraça. A jornada do homem poderia ser magnífica, não fossem os preconceitos herdados e todas as ideias sem fundamento que são perpetuadas das gerações anteriores. Agora sei que essa sina é plantada propositalmente por uma força terrível que me atrai de forma fatal, como a todo ser humano de forma absolutamente subliminar.

Eu estive domingo passado visitando meu amigo Nonomon. Mesmo não sendo humano, ele entende de muita coisa.

Meu amigo Nonomon é bastante antigo. Começou sua existência perto das montanhas das lágrimas, em um dos muitos abismos que existem por lá, muito antes que o primeiro homem tivesse a ideia de riscar seus dois pauzinhos para ver o que acontecia.

Nonomon viveu muitas eras. Esteve presente quando se formaram os anéis de Saturno, presenciou os primeiros passinhos da Via Láctea, viu Nero colocar fogo em Roma. Esteve aqui como observador quando os Reis Magos perseguiam sua tão famosa estrela e também em muitas outras ocasiões, de forma incauta na maioria delas.


Nonomon é uma criatura muito taciturna. Ele pode se mover livremente entre o mundo real e o mundo dos sonhos. Também pode viajar pelo éter com a mesma facilidade. Fala o psique-idioma falado pelos vultos, aquele cuja comunicação vai além da compreensão humana e não pode ser traduzido por palavras ou pela voz sem perder boa dose de seu significado original.

Nonomon é único em sua espécie e tem a habilidade de manipular a visão, a luz e a matéria do éter para se parecer do jeito que quiser. Mas sua aparência original é terrível. Tem cerca de três metros de altura, embora permaneça muito tempo abaixado para ficar na minha altura quando conversamos. Tem dois braços e uma perna extremamente finos e alongados e sua pele parece muito delicada e constantemente úmida, como acontecem com as serosas. Uma segunda perna, contudo, é desproporcionalmente muito grossa e forte e não parece pertencer ao mesmo corpo. A bacia onde as pernas deveriam convergir também é muito delgada e saliente. Os cantos são tão salientes que parecem acomodar mal a pele que a envolve, como se tivesse sido malvestida.

O corpo de Nonomon não possui qualquer pelo que seja. A pele tem uma cor rosa claro que lembra doença. Podem-se notar alguns filamentos sob alguns pontos, mas não posso dizer que sejam veias. O tronco, embora muito alto, vive meio arcado para frente como se fosse um vício de estímulo à corcunda. Mas quando fica ereto parece muito imponente, aumentando ainda mais sua aparência ameaçadora.

A cabeça de Nonomon parece que foi queimada parcialmente, porque parece derretida na nuca, sendo que uma parte da pele escorrida se funde às costas. Seu rosto não apresenta olhos, nem nariz, nem boca (pelo menos não no sentido tradicional da palavra). Ele todo é consistido por uma abertura em “X“ labiada que permanece fechada a maior parte do tempo. Só abre nas raríssimas ocasiões em que boceja, ou quando devora alguma coisa. Dentro dela, existe um órgão estranho que lembra vagamente as presas de um mosquito de padaria comum, muito grande. Também lembra uma língua muito comprida, mas muito deformada.

Não se pode dizer que Nonomon seja um ser do bem (ou do mal). Se é que esse tipo de coisa existe. Conheci Nonomon durante uma viagem de Pronofol. Abusei da dose que estava acostumado e fiquei desacordado durante nove dias. Durante esse tempo, vaguei num mundo em constante falência, muito próximo do que as pessoas chamam de éter. A certa altura, me perdi numa daquelas máquinas geradoras de sonhos inconsistentes, vivendo pesadelos desconexos, estruturas repetidas e situações de perseguição.

Domingo passado eu estava angustiado e não achava tempo para me trancar com meus problemas e pensar sobre eles. Por isso, escolhi ter um sonho lúcido. Queria um tempo num lugar bem isolado, onde o tempo passasse mais devagar para esvaziar meu espírito. Quando meu corpo físico chegou ao R.E.M., abri os olhos e estava em Ramarim. A cidade, assim como a real, estava em ruínas. Não era o tipo de ambiente que eu considerava introspectivo, mas servia porque estava vazia e silenciosa.

Subi numa pilha de escombros que outrora deveria ser uma padaria e fiquei observando três grandes guindastes que estavam abandonados e espalhados aparentemente sem motivo pela cidade. Deitei a cabeça para sentir a brisa e, quando levantei, notei que Nonomon estava ao meu lado.

Ele também refletia. Nunca sei bem como começar uma conversa com ele. Então fiz umas perguntas bem banais que não deveriam significar nada para um ser tão secular como ele. Acho que perguntei umas quatro coisas sem que ele virasse sua cabeça terrível para mim. Quando o constrangimento me sugeria o silêncio, começou a me fazer perguntas e a refletir sobre elas sem nenhum contexto, aparentemente. Ele fazia essas perguntas com a face virada para os mesmos guindastes, sempre distantes. Cheguei a imaginar que eles o preocupavam. Ramarim está sempre cheia deles, pelo menos em sua versão onírica.

Nonomon começou a me perguntar sobre laranjas. Estava muito curioso a respeito delas. Queria saber para o que serviam, por que nascem em árvores e por que não se deve comer as sementes (embora não aconteça nada de mais se você as comer). Isso em especial o deixou tão confuso que ficou um bom tempo divagando sobre o que se deve ou não fazer e quem tomava essas decisões. Depois de alguns rodeios, ficou quieto e voltou a falar nelas, nas benditas laranjas. E tive a impressão de um certo grau de desafio em sua pergunta quando respondi com um “porque sim“ da vida, quando me contestou respondendo que um de meus argumentos não tinha sentido. Seu ponto era que, durante suas viagens a Ramarim, no tempo dos Faraós, não havia laranjas, só tâmaras. Por isso não poderia existir um consenso tão universal a respeito de uma coisa que nem sempre existiu em toda a parte.

É perder tempo tentar extrair dele qualquer coisa que dê o mínimo indício a respeito de sua cadeia de pensamentos. Ele simplesmente ignora sua pergunta, revelando uma faceta um pouco arrogante de sua parte (se é que posso dizer isso). Se ele fosse um homem, eu acharia que seu silêncio repentino teria a ver com algum pensamento censurado. Então ele continuou a me contar uma história totalmente desconexa com o assunto. Achei que era o real motivo de sua aparição naquela realidade e que o assunto das laranjas era meio um rodeio sem propósito.

O homem ainda não sabe disso, mas todo adulto sonhará que transita a pé pelas ruas de Ramarim pelo menos uma vez na vida. E, em nenhum desses sonhos, Ramarim estará em pé. E se estiver povoada, estará por no máximo vinte pessoas. E nenhum homem pode se afastar mais que dez passos de qualquer rua através dos escombros, sem entrar em uma máquina geradora de sonhos inconsistentes e acordar.

Muita gente vai a Ramarim nos sonhos propositalmente, mas poucas ou nenhuma pessoa tem sonhos eróticos lá. As pessoas procuram a cidade mais por motivos escapistas. Muita gente acha reconfortante ver uma realidade pior que a sua e saber que ela não é real. Existem pessoas que só se conhecem nesses sonhos.

Quando se sabe que está sonhando, aquilo se torna muito reconfortante e te dá uma certa liberdade para pensar na vida. Você pode treinar saltos impossíveis sem ter medo de se machucar, escalar montanhas de sucata sem ter medo de se cortar, essas coisas. Mas quando não se tem essa ciência, Ramarim pode ser um pesadelo. Ela transmite uma incrível sensação de falência, perda e desperdício de tempo. Está sempre repleta de enormes guindastes que atingem alturas vertiginosas, até onde o céu alcança. Na época em que eu ainda tinha sonhos involuntários em Ramarim, já tive que correr mais de uma vez deles que despencavam em câmera lenta em minha direção, de uma altura muito alta. E não importava para onde eu corria, eles sempre me encontravam, mas nunca me alcançavam porque eu sempre conseguia me esconder bem. Ainda me sintia muito atraído por eles, embora também me apavorem porque parecia existir um propósito e uma inteligência absolutamente maligna neles.

Nonomon me disse que conheceu um jovem que também tinha a habilidade de ter sonhos lúcidos perambulando pelas ruas de Ramarim. O jovem projetava umas sete pessoas na rua abaixo dos escombros de onde estavam e os torturava. Quando enjoava, os matava e imaginava pessoas novas e diferentes e voltava a torturá-las. Ele achou peculiar esse comportamento e foi ter uma conversa com ele.

O idioma que Nonomon usa é tão mais sensitivo (e tão pouco simbólico) que comecei a ver a história acontecendo a medida que ele contava e me vi transportado sobre os restos de um ônibus - daqueles sanfonados. Avistei que Nonomon estava morfado em um gato preto. Vi também o jovem e as pessoas abaixo dele.

Não deu para ouvir o que falavam, nem qualquer som que fosse. Mas vi a poeira em volta de seus pés começar a se agitar como se tivesse sido influenciada por algum vento em forma de rodamoinho. Logo, o chão de terra se ergueu e inflou e todos os grãos de poeira se lançaram sobre as vítimas em uma velocidade tão alucinante que provocavam cortes na pele. Cada ínfimo grão de areia serpenteava e se lançava, mesmo sem vento algum, mantendo as vestes e os cabelos parados enquanto milhares deles entravam em seus poros e saiam do outro lado; arrastando uma trilha de sangue que esguichava como uma água represada que tenta escapar por uma bexiga cheia quando é furada. E aos milhares! Eles gritavam e se encolhiam, protegendo o rosto, os olhos e a virilha. Mas eu não ouvia som algum. Alguns desistiam e se deitavam no chão desesperados, como se estivessem sendo devorados por formigas. Milhares desses grãos aproveitavam os mais desesperados para entrar em suas bocas e sufocarem seus gritos mudos.

Depois que a cena acabava e os corpos caíam desfalecidos, outros erguiam e o show de terror mudo recomeçava. Comecei a me acostumar e parar de ver o horror para reparar na cena e notei que, ao contrário do que parecia, a tortura não se repetia em pessoas diferentes. Eram os rostos que apareciam em corpos trocados e faziam parecer ser outras pessoas.

Voltei do transe e vi que Nonomon parava de falar. Eu estava novamente em cima da pilha de entulho ao lado dele. Para minha surpresa, ele continuou todo o resto de nossa conversa em meu idioma, não sem transparecer um sotaque esquisito, difícil de reproduzir:

- Enfim você acordou. O que notou?
- Que o jovem tinha prazer em torturar aquela gente.
- Só isso???
- E que todos eram as mesmas pessoas. Por quê?
- Ah! "Por que"! Porque até a adolescência dele lhe apresentaram um padrão de gente para ele ter raiva.
- Ãh? Mas quem? Por quê?
- Porque o que criou o "padrão" precisa de sociopatas. É por isso. Achou que isso fosse útil por algum motivo.
- O que o quê? Quem? Do que você está falando?
- Do seu "porque sim". Das suas sementes, das suas laranjas. Mas não obviamente das minhas tâmaras...

Fiquei muito confuso, mas meu peito parecia que tinha algo quente, ansioso e extremamente certo com alguma verdade absoluta louca para explodir em minha garganta. Parecia que uma ciência oculta já dominava meu inconsciente e que eu só precisava fazê-la vir à tona. Mas meu consciente ainda não tinha o alfabeto próprio para decifrá-la. Como se alguma coisa resposta de algum enigma muito antigo e que ne perturbava estivesse na ponta da língua, mas não o suficiente para se tornar voz. Então Nonomon me ajudou a decifrá-lo com metáforas muito estranhas, cujo sentido se fazia aos poucos.

- Um bebê não sabe falar, não sabe se alimentar, nem caminhar sozinho. Mas ele já sabe dar "tapinhas" quando alguém lhe toma um brinquedo. Uma criança inocente o é até o primeiro dia do jardim quando percebe ter uma menina mais bonita lhe chamando a atenção e decide lhe puxar o cabelo. Um jovem está apaixonado por uma garota até tomar coragem de se declarar e é rejeitado. Desejando do fundo do seu coração que o mundo desabe em sua cabeça para que ela sinta a sua dor... Por quê??? Como vocês sabem todas essas coisas? Elas são realmente inatas? Se uma ameba nascesse em Plutão e evoluísse ela também teria essas reações?

Durante o desenvolvimento, vocês recebem uma influência proposital que lhes oferece padrões para os tendenciar a ser o que se deseje que vocês sejam. É um dos motivos da sensação que muitos experimentam de viver em círculos. Repetindo sempre as mesmas escolhas, as mesmas decisões e os mesmos resultados. É o que faz vencedores sempre serem vencedores e perdedores sempre se sentirem perdedores.

Tem alguma coisa que há séculos têm provocado a degradação de vocês, plantando histórias falsas, arquétipos tendenciosos e manipulando gerações para a sua própria autodestruição. E a principal via de transmissão são os machos. As fêmeas também estão contaminadas, mas os machos são os transmissores.

Nonomon parou e apontou para os guindastes e, em seguida, continuou:

- Tem uma relação muito estreita entre a crença da história das sementes das laranjas e essa coisa absolutamente maligna e oculta que os machos da sua espécie carregam dentro de si: ambos têm algo extremamente perverso interessado em que elas perpetuem. E não são os políticos, não é a monarquia, não é a TV, não é a Maçonaria e também não é a Igreja de vocês. Mas algo muito mais maligno e tirano que está em todos os lugares, espreitando em todas as portas, em todos os olhares, manipulando todas essas coisas que eu citei e que eu também não citei. Desde que o primeiro coacervado se moldou em um homem e tem conduzido seus passos.

Fiquei muito confuso e não respondi nada. Tentei refletir, mas não achei fundamento na comparação. Ele parou e voltou a apontar para os guindastes.

- O que são esses guindastes que você vê em Ramarim? Sabe, eles não existem na Ramarim de verdade. Porém, todo homem que vem aqui os vê. Mas as mulheres não. Por quê?

Eu nunca soube que as mulheres que sonhavam com Ramarim não viam os guindastes. Aquilo me pareceu muito estranho, porque eles são muito marcantes. É quase como que se descobrisse que o Pão de Açúcar no Rio de Janeiro de fato não existisse e que só você o visse. Comecei a ver naquilo tudo uma conexão muito esquisita que soaria ridícula e sem sentido, não tivesse vindo de uma criatura tão sabida e antiga como Nonomon.

- O que quer os tenha colocado lá quer transmitir algo exclusivamente aos homens - chutei.

Nonomon continuou:

- Quando os sinais da guerra começavam a surgir e o desespero afligia o coração das crianças e mulheres de Ramarim, todo homem dos 16 aos 32 anos sonhava que era guiado por um ancião pelos corredores de uma catedral nefasta até um abismo muito fundo e muito largo. Eles podiam notar uma fila de mulheres deformadas chorando muito e atirando bebês nesse abismo, mas nenhum sonhador dava importância à cena. Todos só se importavam com uma única coisa.

Interrompi: - o quê?

- Com a mesma coisa que te aflige agora e que envenena todos do seu gênero: o que tem dentro do abismo. Mas essa não era a questão relevante, como também não é agora. Mas o grau de infecção de vocês é tão alto que qualquer macho da espécie sempre responde a mesma coisa.

- E qual é a tal questão relevante? - perguntei meio emburrado, porque achava que tinha acompanhado a corrente de pensamento.

- Por que as mulheres estão jogando seus bebês no abismo, é claro! - respondeu virando seu rosto para mim.

Fiquei um tempo quieto, mas não muito. Cheguei à conclusão que não tinha variáveis suficientes para responder àquela pergunta. Então Nonomon respondeu, para meu espanto.

- Para chegar à resposta do motivo pelo qual as mulheres estão jogando os bebês no abismo é bastante simples. Basta reduzir as variáveis a poucas questões: A) elas não são as verdadeiras mães dos bebês; B) os bebês não são bebês de verdade; ou C) as mulheres não são mulheres de verdade. Com um pouco de raciocínio chegamos à resposta correta que é C: as mulheres não são mulheres de verdade.

Elas, o abismo, a enorme besta que vive no fundo dele e também outras coisas que compõem a cena e que não vêm ao caso faz parte de uma complexa cadeia de coisas que alguns dos seus chamam de “a-pior-coisa-do-mundo“.

Nonomon se pôs a me explicar o que era aquilo. Materializada, era aquela coisa gigante e difícil de imaginar. No fundo do abismo residia uma fera composta de uma cabeça de quase cem metros de diâmetro, acorrentada ao fundo do abismo por algo oculto e inominável.

- Os homens de Ramarim sonhavam com a pior-coisa-do-mundo momentos antes da guerra. A construção da cena tinha o propósito de torná-los mais confiantes e, portanto, aceitar morrer em combate. Mas estava na figura do ancião o papel mais importante. Ele trazia um falso manto de responsabilidade sobre o sonhador que acordava se sentindo especial, mesmo sem se lembrar de nada do sonho que teve.

Achei que aquilo não tinha sentido. Então ele continuou:

- Não é para fazer sentido. É o que é. Faz parte do conjunto de coisas ocultas que a sua humanidade não está preparada para saber. É o conhecimento dentro do conhecimento. O subtexto dentro do subtexto. O contexto dentro do contexto.

Nonomon parou por uns instantes e continuou ao assunto que tinha começado.

- Todo bebê macho humano sonha que é arremessado pela mãe nos primeiros meses de idade no abismo. É assim que se contaminam. É assim que aprendem a sentir atração pela autodestruição. É assim que aprendem a sentir apego pelo grotesco e pelo sofrimento, ao ver o sofrimento das mães. Assim nasce o estresse.

A partir de então, o seu povo espalha a doença e alimenta a pior-coisa-do-mundo. Cada passo de egoísmo da vida do homem passará a girar em torno desse propósito: tornar a pior-coisa-do-mundo maior e mais forte e voltar para ela, sendo atirado no abismo. E, para alimentar esse sentimento e ajudar o veneno a se multiplicar, a criatura vai influenciar a vida de vocês com sinais sutis e padrões que tem o propósito de condicioná-los para a autodestruição.

É daí que nascem as ideias e as crendices autodestrutivas, ou alienadoras. É daí que nasce o preconceito. É para isso que existem os guindastes no sonho que você está tendo agora. Ramarim de verdade não tem guindastes porque ninguém está trabalhando nela. Ninguém está interessado em reconstrui-la! Esses guindastes aparecem para os homens porque têm a intenção de formar (ou reforçar) uma ideia de autodestruição subliminar em suas cabeças.

Cada briga de bar, cada briga familiar, cada discussão na mais urgente das reuniões de negócios. Assim como toda ideia radical, intolerante, machista, ou desprovida de razão, depressiva, ou nostálgica. Tudo movido pelo desejo de retornarem ao abismo ou de perpetuar essa ideia.

Nonomon parou. Fiquei em silêncio. Olhei para os guindastes. Tinha algumas fitas presas em alguns deles se balançando contra o vento. Tudo feito para provocar minha morte!

Olhei para Nonomon, estava quieto olhando para os guindastes. Parecia que nada do que havia me contado tinha a menor importância. Fiquei griladíssimo! Dezenas de outras perguntas formigavam na minha cabeça, mas não podiam ser formuladas em palavras. Parecia que tudo estava cruelmente conectado, como se diz. Pensei também em Ramarim. Por que sonhamos com a cidade? O que ela tem de especial, além de ter sido muito longeva antes dos bombardeios varrerem ela do mapa? Por que não podemos caminhar por suas estreitas vielas sem entrar em uma máquina geradora de inconsistência? Antes de Ramarim ser destruída, outras cidades eram o palco de sonhadores como eu? Por quê? Qual o verdadeiro papel da pior-coisa-do-mundo nisso tudo? Nosso destino e, ao mesmo tempo, tudo o que conhecemos está vinculada a ela? O que somos nós???

Devia estar parecendo arrasado, por que fiquei muito tempo quieto. Então Nonomon tocou meu braço e me disse “vamos, você já teve demais por hoje. Está na hora de você acordar. Aquela pilha de formulários em cima da sua mesa não vai se digitar sozinha“.

***

Meu trabalho não rendia nada. Não conseguia pensar em outra coisa. Qualquer momento que me sobrava eu usava para fechar os olhos e tentar imaginar essa coisa cruel e manipuladora a que Nonomon chamou de pior-coisa-do-mundo. Tudo a meu redor parecia muito dissimulado e sem importância. Quase cruzei a perigosa linha que muitos loucos fazem de renegar a realidade e escolher viver somente o mundo dos sonhos.

Pouco tempo se passou e consegui digerir melhor as informações que obtive. Fiquei um tempo sem visitar Nonomon, Ramarim e o mundo dos sonhos. Só assim pude processar corretamente o conhecimento que adquiri.

Passei a refletir e fui bem fundo. Pensei no meu avô. A dificuldade que ele tem em aceitar as mudanças dos tempos de hoje e a assimilar coisas novas. Talvez, o natural deslocamento das pessoas idosas e dificuldades não sejam só patológicas, mas o resultado de anos de contaminação daquele grande mal a que Nonomon falava. Talvez explique porque os humanos guardam tanto rancor por coisa nenhuma a vida toda, enquanto cães e outros animais de estimação procuram o dono mesmo depois de uma grande bronca. Talvez explique as principais filosofias dos grandes pacifistas do mundo, como “amar ao próximo“, “perdoar os erros“, “o carma“ e outras correntes que as pessoas entendem como religião. Talvez fossem sonhadores experientes, talvez essas conclusões refletissem o resultado de algum tipo de estudo, cada um do seu jeito.

Tudo girava em minha cabeça num turbilhão de cadeias de eventos e significados intrínsecos e aquilo me deixou muito eufórico. Tive vontade de procurar Nonomon para debater minhas teses, mas me contive porque achei que sua natural frieza pudesse derrubar meu entusiasmo.

Mas sobre todas essas coisas, um pensamento me perseguia e era a cola que unia todas as minhas novas crenças: era a pior-coisa-do-mundo. Senti uma vontade urgente de vê-la pessoalmente. Parecia que era a única coisa importante a se fazer nessa vida. É sem dúvida um desejo irracional e lunático, mas o único que parece fazer sentido. Essa é minha nova obsessão.

Mesmo sabendo que ela foi colocada na minha cabeça de alguma forma, através daqueles guindastes da Ramarim onírica, ou de algum fato corriqueiro que tenha se passado em minha vida e que não dei importância - sem ignorar que foi despertado pelas revelações de Nonomon. Mesmo que o resultado inexorável de toda a equação seja a minha própria destruição. Mesmo que essa decisão não seja exatamente muito mais nobre do que a de sentar a bunda na frente da TV e deixar sua programação corroer minha mente. Afinal de contas, todos os caminhos levam a Roma, certo? A verdade e a ironia de tudo é que, também no final das contas, Roma fica no fundo do abismo...


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário!

Mais lidos