Vultofobia


Sofro de um mal muito raro que me acomete desde muito criança. Tenho medo de vultos.

Mas a mim eles não se manifestam como a outras pessoas. Para mim são mais que sugestões de aparições. São visões fantasmagóricas e ameaçadoras que estão sempre a tentar tramar alguma coisa contra mim.
Li uma vez que são seres invejosos. Cobiçam a condição humana. Não são bem racionais, nem irracionais. São feitos de vontade, decepção e uma boa dose de depressão. São capazes de murchar plantas com sua presença e de causar brigas sem motivo. Mas, para mim, são bem mais que isso.

Eu era uma criança muito medrosa. E, enquanto me fazia quieta cuidando de meu estado de bovina timidez, desenvolvia minhas próprias neuroses. Acho que no fundo gostava disso.

Uma dessas neuroses começou com uma atração irracional a símbolos. Adorava desenhar símbolos e padrões. Começou com aqueles que indicam homem e mulher em banheiros. Depois foram os sinais de trânsito e então ganharam força com outros cada vez mais abstratos e específicos, como logotipos.


Mas o estopim começou mesmo nas transmissões dos jogos de futebol, aos domingos. Nos anos oitenta, os jogos eram transmitidos para acabar às 19h, para dar lugar aos “Trapalhões“. Minha casa ficava toda escura perto desse horário, só a TV ficava ligada e minha imaginação criava asas.

Havia um logotipo usado pela TV na época para ilustrar as reportagens de campo. Era um homenzinho abstrato, feito com poucos traços, segurando uma câmera. Mas as vinhetas da época eram muito ruins e sujas. Então eu não conseguia associar bem aquilo ao seu significado. Para mim era um homem sem-cabeça, exibindo para quem lhe olhasse um outro cabeção não humano. Eu sei, aquilo não fazia sentido nenhum, mas na minha cabeça era uma visão debochada e insana. Talvez justamente por não fazer sentido.

É engraçado dizer que, perto da metade do segundo-tempo, eu tinha medo que aquele garrancho saísse correndo pela casa (mas eu tinha). Para mim, não havia nada mais ilógico e alienígena que aquilo e imaginar algo tão absurdo andando por aí era enlouquecedor. Temia que aquilo nos surpreendesse, saindo do escuro por trás de nós e que ficasse correndo pela sala. Eu nunca pensei de verdade no que poderia acontecer se aquela coisa aparecesse de repente, só achava a cena apavorante. E não era raro me fraglarem olhando para de trás do sofá, investigando, em vez de para a tela da TV.

O tempo passou e cresci. O homenzinho da TV nunca deu as caras. Durante muito tempo achava graça da situação quando lembrava, embora eu nunca tenha perdido dentro de mim o significado do terror que sentia. Mas foi na idade adulta que meus problemas de verdade começaram.

Certa vez eu estava em um almoço de negócios em um restaurante de um hotel. Não lembro bem porque, mas fixei o olhar aleatoriamente no horizonte e encontrei um garçom que preparava um carrinho de sobremesas. Vi claramente o homem se dividir em uma cópia que se dirigiu ao banheiro, enquanto o original continuava a preparar o carrinho.

Os raros artigos que encontrei que tratam do tema, dão conta de que vultos são prisioneiros da visão periférica dos homens e não oferecem perigo enquanto permanecem assim. Já vi alguns textos que afirmam que vultos nunca podem se libertar desse campo periférico. Que tal hipótese é tão absurda como a de um peixe que não precise de água para respirar, ou de um pássaro que não precise de asas para voar. Vai contra a própria natureza.

Mas então eu estava lá, pensando na vida, quando sinto o mesmo velho pavor de infância ao constatar que minha sombra, na minha frente, fazia movimentos que eu não fazia...

No episódio do garçom eu me fiz de desentendido e fiz de conta que nada vi. Até porque não queria arruinar meu almoço fazendo uma cena (sempre fui muito cauteloso quanto a isso, até mesmo nas minhas mais íntimas paranoias). Desta vez, porém, eu tive bastante tempo no anonimato para aproveitar o terror de notar que uma situação absurda estava realmente acontecendo. Eu via minha sombra olhando para as próprias mãos, como se estivesse a estudar os próprios dedos.

A coisa chegou a um ponto em que eu precisava viver uma vida dupla. Em uma eu era um respeitavel cidadão comum, eficiente no trabalho, popular e com muitos amigos e, na outra, um atormentado, assombrado por vultos a qualquer hora do dia e em qualquer horário. Cheguei a freqüentar um psiquiatra na Av Angélica que me receitou um comprimido estranho que desfazia na boca, como aquelas balas de côco secas que você encontra em aniversário de criança. Mas só piorava. Se antes eu só via as coisas, agora eu podia ver que as coisas também podiam me ver. Uma vez um homem de chapéu e sem nariz se materializar na minha frente e começar a pentear o cabelo - sem tirar o chapéu - usando o lado errado do pente. Em outra ocasião, vi uma mulher atravessando a rua com um cachorro que caminhava de cabeça para baixo mas, ainda assim, preso pela coleira.

As reuniões com os amigos eram a pior parte. Eu tinha que simular indiferença às coisas que via o tempo todo. Eu notava vultos na cozinha que se desprendiam de meu relance e caminhavam pela sala. Já cheguei a ver de tudo. Certa vez um vulto de um homem com roupa de encanador surgiu da sombra de uma cômoda, atravessou a conversa que eu estava tendo com um casal e se pôs ao lado da mulher para lhe lamber o rosto. Tudo isso olhando para mim em tom de absoluto deboche. Foi a primeira vez que os vultos interagiam contra alguém, mesmo que esse alguém não tenha tido a mínima noção do que acontecia.

Dava para ver que tentavam imitar coisas que eu conhecia, mas sempre cometiam “erros de cálculo“ (por assim dizer) e as aparições pareciam sempre defeituosas, como uma cópia barata, mas aterrorizante. Uma vez pensei ter visto uma professora que tive no primário na minha sala. Quando me virei comprovei que se tratava dela mesma. Estava sentada na poutrona muito calma. Seria a versão mais perfeita de todas as materializações que tive nessa época, exceto por sua cabeça estar colocada ao contrário ao pescoço e também por ter cabelos grudados nas costas de uma das mãos.

Aos poucos eles foram ficando piores. Acho que pelo fato de eu estar tentando ignorá-los. Então começaram a se materializar como gente famosa. Um dia vi passar por mim uma atriz famosa da novela das oito. Quando adiantou uns dois passos vi pequenas cabeças sairem de sua nuca, de entre os cabelos, e rangendo os dentes para mim como os gatos fazem. Isso aconteceu em plena luz do dia, na Rua São Bento.

Esse foi outro episódio marcante. A partir de então passei a ter pesadelos terríveis e era sempre acordado de madrugada por um grito feminino de sofrimento muito alto e que surgia do banheiro. Eu ia ao banheiro com o coração acelerado, esperando pelo pior e morrendo de raiva e terror e via a luz acesa, mesmo que eu sempre a apagasse antes de dormir. Nunca tinha nada lá, ou sinal de alguém que lá estivesse. Não era sempre que isso acontecia e, quando acontecia, era sempre na madrugada de domingo para segunda... até hoje não sei dizer porquê. O incrível é que eu conseguia voltar a dormir depois disso...

No pesadelo, eu estava sempre preso a um disco de madeira com os braços e pernas amarrados e um carrasco com cabeça de cavalo me torturava. Todas as noites ele abria buracos nos meus pulsos e enfiava uma grande pinça que usava para quebrar meus ossos e retirá-los em pequenos estilhaços. Ele quebrava ossos que eu nem sabia que existiam. Por ser um sonho, acho que sentia bem mais pavor do que dor.

Os dias foram passando e as aparições foram piorando. Teve um tempo que desenvolvi um grande medo de multidões. Eu nunca sabia quem era real e quem era vulto, até deparar com alguém realizando algum feito de gelar a espinha. No pior desses episódios me deparei com uma multidão toda dessas coisas. Achando estar passando por uma passeata por engano, levei uns dez minutos para notar pessoas da sacada dos prédios me olhando e estranhando meu comportamento, ao reagir com horror ao ver centopeias humanas cruzando meu caminho, totens vivos e rodas de homens vestidos como burgueses do seculo passado, com bocas muito pequenas e umbigos imundos no lugar de olhos, conversando em algum tipo de dialeto alienígena.

Tudo isso era apavorante, me assustava muito porque me fazia crer estar louco, mas até então eu nunca era atacado fisicamente. Até que um acontecimento me fez entender que temer perder a lucidez deveria ser o menor de meus temores. E é por isso que escrevo estas palavras. Na tentativa de juntar as pontas soltas e tentar raciocinar sobre como terminar meu martírio.

Numa dessas manhãs seguidas às noites em que eu era acordado pelo grito do banheiro, notei as têmporas sangrando. Achei que tinha me machucado ao pentear o cabelo (talvez arrancado um cravo "inquilino" por acidente). A quantidade não era muita, mas exigia uma explicação. Após revirar todos os cômodos por onde estive desde o despertar tentando descobrir o que pudesse ter me ferido, voltei ao quarto e achei pequenas gotas de sangue em meu travesseiro.

Ao investigá-lo fiquei surpreso com a descoberta: duas agulhas de costura, posicionadas uma para cada um dos meus olhos. Tinham nascido de dentro do travesseiro, você podia seguir a pontinha delas, mas não conseguia achar o resto do corpo de dentro, dando a impressão de que eram continuação da espuma. Plantadas com o propósito de me ferir, provavelmente por algum vulto comparsa da mesma coisa que gritava em meu banheiro. Dando a oportunidade para me afastar e deixar meu travesseiro exposto para que a armadilha fosse montada.

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