Decidimos invadir o quarto de Floriano e mexer em suas coisas. Queríamos
achar seus feitiços mais inofensivos e testá-los para ter uma ideia de até onde
tinha chegado. Infelizmente, o homem era um poço de desorganização e não era
fácil se achar naquele monte de pilhas de papeis velhos e tubos vazios de
Pronofol.
Um de nós nos alertou para decorar - e se possível fotografar - todas as
posições onde a pilha estava, a fim de manter imperceptível nosso atrevimento.
Mas eu não tive paciência e recorri a uma pilha mais discreta que jazia sobre
uma cadeira. Havia alguns desenhos geométricos que logo identifiquei replicados
com giz no chão de madeira. Me adiantei até lá com o mesmo papel e localizei o
desenho no piso. Partindo do pressuposto que fazia corretamente, dei três
voltas no sentido anti-horário, como sugeriam aquelas anotações difíceis de
entender.
Outros de nós testavam outros sortilégios. Alguns misturavam compostos,
outros copiavam rabiscos e alguns até cantavam. Acho que a maioria desses
feitiços estava incompleta, mas pelo menos um só precisava ser executado. Não
sei bem qual de nós foi o felizardo, mas de repente a luz se apagou.
Imediatamente ouvimos passos duros, rápidos e pesados por todo o quarto
escuro. Era como se alguma criança corresse por todo o lado, sem ter medo de se
esbarrar em nada. Eram passos duros bem apressados. Dava para notar que eram
feitos com o calcanhar, que estalava forte na madeira. Notava-se que corria por
todo o lado. Às vezes podia-se ouvir que chegava bem perto de você e parava.
Dava a impressão que se arcava sobre os pés para colar os olhos em você. Mas
não tinha nada lá.
Aos poucos, mais feitiços começaram a surtir efeito. Tudo estava escuro,
mas você podia sentir pequenos objetos levitando, provavelmente canetas e
outras tralhas de escritório. Cheguei a ter a impressão de ouvir até mesmo água
sendo despejada no chão, como se tivesse uma torneira sem propósito no meio da
sala.
Deduzimos que era algum tipo de feitiço que tinha o poder de desvincular
causa de consequência. Logo percebemos arranhões sem unhas, risadas sem bocas e
toques sem mãos. A maioria dos feitiços que achamos tinha essa característica
de desmontar a realidade, provocando reações que fariam a maioria das pessoas
leigas urinarem nas calças.
Mas a maior bizarrice de todas veio mesmo da dispensa que achamos. Era
um quartinho com pouco mais de três metros quadrados. Tinha uma luz amarela
fraca e um odor insuportável. O motivo: o lugar guardava gaiolas com galinhas.
Deviam ter umas seis dessas gaiolas. Uma estava sobre a mesa de madeira
apodrecida, a qual trazia também um papel embolorado com uma planta e uma
curiosa máquina de madeira, entrelaçada com barbantes. Lembrava vagamente uma
máquina muito antiga de tear.
Me aproximei da mesa. O papel embolorado era um projeto da máquina. Era
muito antigo e suas instruções pareciam também muito arcaicas para mim. A
máquina era mesmo impressionante, devia ter uns cinquenta centímetros quadrados
e os barbantes eram tremendamente espalhados, entrelaçados e cruzados. Mas não
eram, em absoluto, desorganizados. A lógica minimalista com que os fios estavam
distribuídos soava até meio “alienígena“. Havia tantos cruzamentos e
entrelaçamentos bem pensados e agrupados que acreditei, por um momento, que
cumpriam o papel de “engrenagens“ de algum tipo de mecanismo. Agora sabemos que
a máquina de pêndulos localizada na Universidade do Sobral não era a única
engenharia do Livro da Loucura em que Floriano estava trabalhando.
Da máquina, partia um único barbante com direção à gaiola que estava
também sobre a mesa, separada uns noventa centímetros.
Mirei minha lanterna com cuidado, mas diminuindo a intensidade da luz.
Não queria cegar as pobres galinhas, nem provocar qualquer tipo de alvoroço
desnecessário. Então fui seguindo o barbante a partir da máquina em direção à
gaiola, de forma bem devagar, meio que me preparando para qualquer bizarrice
que achasse e também bolando algo lógico para explicar depois. Mas nada podia
me preparar para a crueldade que veria na ponta desse barbante comprido, pois
acho que deixei escapar um "misericórdia", porque o resto veio em meu
auxílio.
O barbante entrava na gaiola que estava sobre a mesa e não terminava,
mas se fundia ao dorso de uma pobre galinha que agonizava em silêncio. Era como
se o barbante já tivesse nascido na pele dela, sem sinais de implante, ou
mutilação. Estava pelada a partir desse ponto e, aos poucos, se via um tom
dourado e metálico se espalhando por toda a pele, terminando nas regiões onde
ainda havia penas. Toda a pele que estava dourada estava enrijecida e, nos
pontos onde a cor era mais forte, parecia até maciça. Ela permanecia imóvel e
movia os olhos bem devagar. A respiração estava muito limitada devido ao
enrijecimento da pele que certamente alcançava alguns órgãos internos,
inclusive os pulmões.
Um de meus amigos viu meu tom de perplexidade e decidiu devolver as
palavras a minha boca com uma última dedução. Eu devia parecer muito assustado
porque tive a impressão de ter sentido certo sarcasmo vindo dele para aliviar a
tensão do momento, embora até agora eu não encontre uma explicação mais
racional para aquela cena (e olha que eu tentei): "Ah! Então é isso o quê
ela faz! Transforma frangos em ouro!".
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