Verdade ou não, a história que vou lhes contar serve, no
mínimo, para refletir a respeito dos efeitos nocivos da introspecção em
excesso. Certas pessoas se prendem em verdadeiros “casulos da alma“ e vivem
distraídas, alheias a tudo. Com pouco interesse em tudo o que é real e social,
terminando muitas vezes a se desfazer do próprio corpo.
Mas a história que você vai ler não chama a atenção por esse
grau de desleixo com o “palpável“, mas por uma característica que as pessoas
muito introspectivas têm em comum: o excesso de detalhismo e obceção.
Odair esteve em um velório. Foi obrigado porque o defunto
trabalhara com ele e foi convencido de que enforcar em casa tal data solene, em
vez de dar o último adeus ao cadáver bem vestido, seria leviano demais e
deixaria as pessoas com raiva.
Uma pessoa que Odair não sabia direito quem era pediu, a
esmo, que fizesse uma oração em voz alta para que todos acompanhassem. Todos do
escritório estavam rodeados e de cabeça baixa e Odair se lembrou que não sabia
rezar... Na verdade, nem sentir-se triste Odair sabia fazer...
Ficou um tempo refletindo uma forma de improvisar para
fingir que rezava. Felizmente, uma mulher muito gentil lhe deu um papelzinho
elaborado, feito ainda à Olivette eletrônica, com uma oraçãozinha. O papel
estava meio amassado e tinha uns tracinhos que deveriam ser substituídos pelo
nome do falecido. Provavelmente, aquele papelzinho já havia rodado muitos
velórios e não se emocionava mais com aquele momento de despedida.
Até que o papelzinho fosse entregue, Odair começou a olhar
para o defunto. Não por compaixão ou saudades, mas por curiosidade. Nunca tinha
visto um defunto pessoalmente. Queria saber se os seriados de TV que assistia
os retratavam com fidelidade. Então, ficava procurando por traços do
"C.S.I." e se divertia secretamente com isso. Ficava estudando
detalhes absolutamente irrelevantes para a maioria dos mortais, como o chumaço
de algodão nas narinas - notou que um era ligeiramente maior que o outro - e o
penteado que usava.
Foi durante essa análise fútil que Odair teve a impressão de
que o defunto guardava um sorriso discreto no canto da boca. E, ainda durante a
oração, pareceu uma criança recém-alfabetizada que lê um texto, tamanha sua dificuldade
ante a necessidade que tinha de ficar checando se aquilo era mesmo um sorriso
malicioso - talvez uma gozação de algum funcionário muito acostumado a fazer
aquilo, ou algum ato-reflexo que certamente algum documentário da TV a cabo
falaria a respeito, explicando.
Já na casa vazia (que acostumara a esse estado desde que a
esposinha sem-graça percebia o grande atraso de vida com que trocara a aliança
e decidira picar a mula), ficou um tempão pensando naquele sorriso. Mas não
tinha medo. Em absoluto! - É preciso crer em alguma coisa para suspeitar de
outra e Odair não acreditava em nada, só no Mário Bros. e no YouTube...
Passou a cultivar um ritual estranho. Ficava reparando em
fotos de revistas, de jornais e outdoors de publicidade sorrisos ocultos onde
não existiam. Esforçava-se para vê-los e se divertia quando os achava. Logo, a
mania ganhou asas quando passou a gastar dezenas de minutos observando, às
escondidas, os colegas de trabalho que estavam concentrados em algum trabalho -
e até os muito ranzinzas - se o rosto deles guardava algum sorriso fantasma
escondido.
Logo era no trânsito parado, nas filas dos bancos, banheiros
públicos e até no cinema. Já chegou a alugar filmes sem se ater na história com
o único propósito de congelar alguma cena taciturna e ficar minutos caçando
sorrisos ocultos. E não existiam gêneros para a mania: fossem drama, humor,
terror e até pornôs. Já chegou ao cúmulo de ver filmes inteiros assim sem saber
do que se tratavam. Só se tornou notório quando se pegou parado em frente a uma
mesa de baralho, enquanto os amigos tentavam torná-lo mais sociável lhe
ensinando pôker. Ficou pelo menos cinco minutos encarando a dama de copas. E
teria ficado ainda mais se não lhe chamassem a atenção.
Mas o terror começou mesmo em casa. Certa vez, assistia ao
Jornal Nacional quando teve a impressão de que o âncora guardava um sorriso
malicioso oculto por de trás do semblante sério, enquanto noticiava uma
terrível noticia: um atentado terrorista teria deixado centenas de mortes em
Ramarim.
O que chamava a atenção é que, diferente das outras ocasiões
em que Odair forçava achar o tal sorriso, nesta o sorriso o procurava. Ele não
estava procurando nada porque encontrava-se exausto de uma noite mal dormida e
já estava se preparando para dormir. Além do fato de sentir que o âncora
lançara um olhar para a câmera que parecia ser direcionado diretamente para
ele.
Odair se sentiu desconcertado, mas não deu
"chilique", nem desligou a TV. Se retirou um pouco para a cozinha,
deu três voltas nela e voltou. Queria tirar aquela história a limpo, então
voltou e esperou pelo final do intervalo comercial que não acabava mais. Só que
o jornal não voltou a passar, já tinha começado a novela.
Odair teve que engolir em seco aquele momento sinistro
porque não havia mais o que fazer. Jornal Nacional: agora só na noite seguinte!
A sensação que o episódio causou foi tamanha que, no dia
seguinte, Odair não tentou procurar mais sorrisos falsos em mais ninguém.
Estava esperando ansiosamente pelo final daquele dia para voltar a conferir se
o âncora voltava a sorrir para ele aquele sorriso espectral.
A noite chegou e Odair chegou com ela. Preparou um aparato
para gravar o telejornal e, assim, estudar um eventual novo sorriso. Mas o
sorriso não veio. Frustrado, Odair voltou a dormir mais cedo. Só que teve um
pesadelo muito estranho.
Odair sonhava que ainda estava a ver o jornal. Mas, em lugar
de sua sala, estava em um vale cheio de escombros. E soube que estava em
Ramarim. A sua frente, estava o casal que apresentava o jornal, mas sem a tela
da TV a separá-los. À volta, estava a cidade em ruínas, mas vazia. Havia
prédios de todo o tipo destruídos, casas grandes com rachaduras imensas e
desproporcionais atravessando toda a parede. Buracos descomunais provocados por
algum gigante, ou algo sobrenatural. E carros. Carros antigos empilhados de uma
forma que somente algo muito grande podia empilhar. Mas, na verdade, tudo obra
de bombas.
O âncora se virou para ele e um rugido imenso pareceu sair
de sua boca, enquanto lia as notícias. Não eram palavras que pudessem ser
entendidas por ninguém são e Odair precisou tampar seus ouvidos para atenuar o
terror. Por um breve instante, o âncora deu um sorriso tão largo e aterrorizante
que deformou-lhe todo o rosto, fazendo as maçãs do rosto pararem ao lado das
orelhas. Odair teve que virar o rosto para suportar o pavor.
Quando acordou, Odair se viu no chão e sua cama estava no
outro lado do quarto, de onde normalmente costumava ficar. O estrado estava
jogado no corredor e o colchão tinha simplesmente sumido. Parecia que o quarto
tinha sido posto na trajetória de um furacão e Odair se perguntou se aquela não
teria sido sua primeira experiência de Terror Noturno.
Quando se preparava para ir ao trabalho, tomou um susto
daqueles: penteava o cabelo em frente ao espelho quando o próprio reflexo lhe
devolvia um bonito sorriso de mostrar os dentes quando, na verdade, nem de boca
aberta estava...
Odair caiu para trás e chegou a enfiar o braço inteiro para
dentro da privada com a queda, causando um hematoma bem feio nas axilas e um
corte digno de pontos na nuca, que sangrava muito. Tomando o maior cuidado de
evitar o espelho, circuncidou a pia e decidiu ir ao médico e faltar ao trabalho.
Preferiu a saída fácil: fingiu que o reflexo era fruto de sua imaginação e
procurou o médico mais para ver o corte da cabeça mesmo.
Mesmo assim, evitou a todo custo qualquer reflexo do taxi
até o hospital, quando foi recebido na ala de emergência devido ao local da
batida, embora não fosse o caso mais grave do estabelecimento. Teve parte da
cabeça raspada, pontos, raio-x e observação. Já passava da hora do almoço
quando estava deitado na maca em uma sala separada olhando para o teto sem
fazer nada quando duas enfermeiras entraram no quarto.
Odair viu a imagem da loucura. Entravam duas moças vestidas
de enfermeira com o sorriso travado e anormalmente esticado, aparentando estar
presos por alguma coisa nos cantos dos ossos que formam os maxilares. Traziam
também fileiras de dentes com uma quantidade muito maior deles que seres
humanos têm. E olhos esbugalhados terrivelmente estatelados, com retinas
fixadas para onde o rosto apontava, sem se mover, nem piscar. E ambas traziam
seringas. E não importava para onde se viravam, mantinham o rosto paranoico
apontado para ele.
Odair tomou um grande susto e saltou da maca, se esquecendo
que estava com dor de cabeça. Pegou uma bandeja e tentou se defender desferindo
um golpe no braço de uma delas. Só que elas não vacilavam. Não recuavam. Se
aproximavam com o sorriso cada vez mais arreganhado e aterrador, chegando a
emitir um som como se estivessem para falar alguma coisa mas sem força
suficiente para a voz sair. Já estavam com o rosto colado ao dele quando uma delas
derrubou a seringa da mão com a bandejada desferida, mas a outra, desajeitada,
tentava furar o rosto do infeliz que não tinha forças para se desvencilhar por
completo.
Levou um tempo até Odair conseguir uma brecha digna para
fugir da muvuca. Fugiu do jeito que estava e correu aos tropeções pelos
corredores do hospital. Já estava sem fôlego quando passou pela sala de espera
de uma das alas e acompanhou com os olhos abaixados todos aqueles pacientes que
aguardavam a vez. Todos com aqueles mesmos sorrisos psicopatas e olhos
estatelados das enfermeiras. Ele até diminuiu o passo para recobrar o fôlego,
mas teve que desistir de fazê-lo, porque dentre aquela “plateia“ de risonhos zumbis,
pelo menos um havia se levantado ante a sua presença. E menos outros quatro
ameaçavam repetir o gesto.
Odair terminou na rua. Mas sua fuga contra os olhares
psicopatas e os sorrisos deformados e obcecados continuava. Agora eles
desbotavam nos rostos de todas as pessoas da rua. Por toda a parte, por todo
lugar. Eles seguiam suas rotinas, atravessavam as faixas de pedestres, levavam
o cão para passear, sempre desfilando seu torcicolo sobrenatural voltado para
Odair exibindo um sorriso ainda mais repuxado e deformado. Havia algumas
pessoas que andavam olhando para o lado, embora o tronco estivesse voltado para
a direção contrária, lembrando até aqueles sinaleiros usados nas estradas de
ferro, em que uma grande placa circular e colorida está preparada para estar
sempre voltada para a direção dos trens, não importa a posição de suas chaves,
para manter os maquinistas sempre informados.
E os sorrisos... o que dizer dos sorrisos? Alguns eram tão
tresloucamente repuxados que pareciam ter sido provocados por algum tipo de
instrumento de tortura. E eles não eram fixos. Era nítido que os donos deles se
esforçavam para aumentá-los ainda mais e, por isso, escapava-lhes aquele leve
pronunciado de voz vago, que as enfermeiras do hospital também tinham. E também
era notório que eram feitos meio contra a vontade. E não só os adultos carregavam
esse semblante, mas também as crianças e bebês. Até mesmo aqueles jovens demais
para arreganhar os dentes deslocavam seu pescoço para Odair a fim de escancarar
o cabeção em direção a ele para deformar seu rosto e expor as gengivas ainda
desdentadas e a esbugalhar os olhinhos prematuros.
* * *
Odair largou tudo e fugiu para o norte. Agora ele vive em um
barraco no meio do mato, isolado de todos. Virou eremita para fugir dos
fantasmas sorridentes. Evita reflexos de qualquer sorte. Até da sua. Por isso,
deixou a barba crescer. Assim, caso se depare com algum espelho, seu reflexo
fica impedido de sorrir-lhe de volta por causa da barba grande. - Engenhoso!
Não lhe falta nada, mas o inverno é duro e a higiene
precária. Passou a viver da carne e da pesca e no verão se ocupa em eliminar
poças de água que venham a servir como espelhos dos infernos.
Enfim, Odair reaprendeu a viver. Vive com o Sorocaba e o
Feijão, seus dois vira-latas. Ainda guarda muito medo das assombrações e faz o
impossível para mantê-las afastadas e tem conseguido certo êxito - pelo menos
até que os fantasmas dos animais também aprendam a sorrir.
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